A CARTA
Bastião o alcançou antes que chegasse ao escadão de pedras e quase sem fôlego lhe entregou o envelope. Uma linda cartinha escrita à mão em um papel estampado com mimosos corações vermelhos. Deco mal sabia ler, mas compreendeu bem a importância daquele pedacinho de papel. Apertou-a junto ao peito e correu em disparada para casa. Mais que depressa pediu para que a irmã mais velha fizesse a leitura e revelasse os segredos e encantos contidos naquele texto. Era uma linda declaração de amor assinada por Rose, sua colega de classe. A menina mais linda da escola por quem se apaixonara. Naquele instante tivera certeza de que conhecera aos sete anos o primeiro e grande amor de sua vida. Passavam grande parte do dia juntos. Sentavam-se em cadeiras próximas, passeavam de mãos dadas pelo pátio e lanchavam juntos. Nenhum professor implicava com isso e ninguém cogitava separá-los. Na verdade todos achavam aquilo uma graça. A maior mostra de culto ao amor sincero. Por três anos as pessoas viram a construção da mais linda estória de amor. Esse foi o tempo determinado por Deus para os dois. No dia 31 de dezembro, durante as festividades do Réveillon, Rose começou a passar mal e sofreu uma parada cardíaca. Os pais de Rose acionaram o socorro, mas quando a equipe chegou ela já estava morta. A tristeza nos olhos de Deco era de cortar o coração, porém o efeito mais difícil de mensurar eram os impactos psicológicos, as feridas em sua mente. Na semana seguinte, Deco viu uma nova família mudar-se para uma casa ao lado da sua. O casal tinha nos braços uma linda bebê de olhos verdes, cabelos cacheados e boquinha carnuda. Deco tornou-se amigo deles e passava grande parte do dia ajudando a cuidar de Mary. A menina inexplicavelmente tinha desenvolvido grande simpatia por Deco e era justamente no colo dele que ela ficava mais tranquila. Mary nascera no dia primeiro de janeiro, nos primeiros minutos do ano, ao som dos morteiros e sob o clarão dos fogos de artifícios. Era curioso saber que ela nascera no mesmo instante em que Rose morrera. Deco não falava sobre isso com ninguém, mas via nos olhos dela o mesmo brilho dos olhos de Rose. No final do ano, quando já se aproximava o Natal, os pais de Mary resolveram mudar-se de novo e Deco perdeu o contato com eles. Ele chamou essa situação de ausente de Natal. Cresceu, se tornou homem, formou-se em jornalismo e virou editor de um pequeno jornal na cidadezinha onde morava. Certa ocasião, visualizou dentro de um ônibus, uma garota linda, loira, de cabelos cacheados e um brilho nos olhos que ele bem conhecia. Se olharam por alguns segundos e o ônibus se foi. Ele amou aquela menina e a recíproca era verdadeira. Nos dias seguintes Deco tentou encontrá-la nos ônibus que transitavam pela cidade, nas ruas, na multidão, entretanto, sua busca frustrava-se a cada tentativa. O destino parecia se opor a tudo que ele denominava amor. Deco tentava dar rumo à sua vida quando viu mais uma vez um caminhão de mudanças parado ao lado de sua casa. Os pais de Mary estavam retornando para a mesma casa de onde haviam saído. Quinze anos depois. Qual não foi a sua surpresa ao visualizar a menina do ônibus parada em frente ao portão? Era Mary. Por tanto tempo aqueles olhos se procuraram e agora estavam ali frente à frente. Deco pensou em se declarar, mas avaliou com calma a situação, já que Mary era apenas uma garota de quinze anos. Preferiu conter-se e deixar o destino (que nunca fora amigo) mudar de lado. Numa manhã de domingo, quando subiu em sua moto para sair, percebeu um pequeno envelope sobre o painel. Ao abri-lo percebeu tratar-se de uma carta de amor. Nela, Mary declarava todo seu amor por ele. Mais do que o conteúdo, mais do que a convicção do amor correspondido, uma coisa lhe chamou demais a atenção. Enquanto lia foi tomado por uma grande emoção. Seu coração simplesmente quebrantou-se e um nó na garganta parecia lhe dificultar a respiração. A letra, as expressões, o formato da carta, tudo era incrivelmente semelhante àquela primeira carta que recebera de Rose, ainda criança, a qual mantivera guardada até os dias atuais. Não havia necessidade de compará-las. Tinha certeza que as duas cartas tinham sido escritas pela mesma pessoa. Algo inexplicável estava acontecendo e Deco teve a convicção de que o destino estava apresentando um amor maior que o tempo, maior que a vida, maior que tudo.