SAUDADE DAS ESTRELAS - WANDA CRISTINA

Era de manhã. O quarto estava frio. O aparelho de ar condicionado zoava como o ronco de Frederico que, ao meu lado, ainda dormia. A chuva permanecia ininterrupta desde o dia anterior, mas caía discreta, quase inaudível para quem estava entre paredes e laje. As minhas lembranças jaziam debaixo de três cobertores: os quatro anos de namoro, o casamento, o sonho de ter filhos e a notícia da esterilidade do marido. A insônia, também friorenta, fizera-me companhia durante toda a noite.

O despertador tocou. Frederico mexeu-se. Parecia acordar. Abraçou-me quase sonambúlico. Seu corpo estava morno, mais acolhedor que todas as cobertas com as quais driblei a madrugada fria. Dei-lhe um lânguido beijo na testa. O suficiente para que as luzes se acendessem e os dois corpos se misturassem, em busca do deleite que o inquilinismo recíproco lhes causava. O chuveiro, que eu julgara álgido e hibernoso, foi apenas cúmplice de mais uma cópula matinal.

Depois disso, o dia apresentou-se aparentemente inerte: ele foi ao escritório. E eu, em casa, fiz todos os quefazeres da doméstica na qual me transformara. Dez horas da manhã e tudo estava maquinalmente pronto: o almoço, o jantar, a casa...

De repente, a campainha do telefone tocou. Era do escritório. A voz da secretária tropeçava em prantos:

- Do...do...dona...Leda – ela titubeava do outro lado da linha – do...dona Leda...

- Qual é o problema? – interrompi entre tiques de ansiedade.

- Seu Fre...Frederico! – concluiu cheia de nervosia – Seu Frederico morreu.

O mesmo coração com que Frederico me amara, roubou Frederico de mim. Um infarto. Meu corpo esmoreceu cadente. Todas as dores pelas quais passei, em toda minha vida, não foram, juntas, mais terebrantes do que a morte de Frederico... Ele, sereno sobre a pedra de mármore, era o viúvo, enquanto eu, no sepulcro das minhas desesperanças, precisava de quem chorasse e orasse por mim.

O dia foi realmente tempestuoso, cheio de lágrimas que se misturavam com as lembranças do nosso tempo. O silêncio, as mãos postas sobre o peito, as flores adornando o caixão, tudo parecia um pesadelo do qual eu nunca mais acordaria. O enterro de Frederico era o meu enterro, e cada pá de terra molhada, que cobria o corpo daquele a quem dei inteiramente o meu, anunciava um mau tempo em minha vida...

Meus pais queriam que eu fosse morar com eles. Eu preferi ficar reduzida à minha solidão a sentir-me sozinha em muitas companhias. Foi assim que novamente a noite chegou a mim. O quarto continuava frio. Agasalhei-me nos meus lençóis e, também, no lençol de Frederico, que ainda exalava seu cheiro. O aparelho de ar condicionado parecia solidário à minha saudade e apenas balbuciava o silêncio dos roncos daquele que eu tanto amara. A chuva lá fora também ficou miúda e silente. A insônia permanecia friorenta como eu...

Resolvi ligar a televisão. Em dado momento, tive a ligeira sensação de que o sono havia roubado minha angústia. Foi quando senti algo sobre o meu corpo, a acariciar toda a minha pele, fazendo-me a mais completa de todas as alpinistas que, da forma mais sui generis, conseguiu alcançar o acme do gozo. Foi um coito paranormal e, concomitantemente, angelical, com direito a beijos, abraços e carícias invejáveis aos mais amados dos amantes. Sentia ainda no rosto o resfôlego do parceiro invisível. Lambuzei meu olfato com o aroma do sêmen fugidio que, de sorrate, transladou o suor de Frederico para o meu. Depois do clímax, o meu corpo ainda sobejava resquícios de delírios. Chegada a calmaria, abri os olhos. E quem vi?...

De todos os lençóis, apenas o de Frederico estava sobre mim. Cobria-me a barriga. Eu estava só. Fui ao banheiro. Lavei-me. Não havia ninguém atrás da porta, nem debaixo do lavabo ou da cama... Murmurei: Frederico!...

Noites passavam sob o mesmo ritual de frenesi e, sempre que amanhecia, eu sentia saudade das estrelas. Mas eu também teria que enfrentar a vida debaixo do sol. E foi por isso que decidi não fechar o escritório de advocacia. Só então, lembrei-me de que havíamos nos conhecido na Faculdade de Direito. Só então, dei-me conta de que eu era uma advogada. Resolvi, pois, guardar a doméstica que eu havia sido desde o dia em que me casei e fui à luta. Comecei a advogar minha ilusão de ser feliz, pelo menos profissionalmente. Contudo, algo permanecia imutável: o meu quarto, a noite, a insônia, o espectro do amante e as horas de amor sob a penumbra...

Passados três meses da morte de Frederico, meu corpo enfraqueceu de tal forma que, necessariamente, tive que ir ao médico. Algo me dizia ser estresse. A saudade me estressara...

O doutor, contudo, tinha outro diagnóstico. Olhou-me radiante:

- Leda, querida, parabéns!...

Atenuei a angústia do olhar com um fiapo de sorriso:

- o que poderia me fazer feliz, doutor?

- ânimo, Leda, nem tudo são espinhos – falou abraçando-me – Frederico deixou-te um presente.

- um presente?!... – indaguei admirada.

- Sim. Estás grávida. Estás grávida. E aí, não te animas?

O meu médico não sabia que, no dia anterior à morte de Frederico, saíra o resultado dos seus exames, ratificando a sua esterilidade. Há muito queríamos ter um filho e nunca o pudemos ter. Eu não engravidaria em hipótese alguma. Nunca traí Frederico, nunca fiz amor senão com ele. Foi então que passou pela minha ideia a doce ilusão de que meu marido ainda estava comigo, no meu quarto, todas as noites...

Precisamente no dia em que ele completara nove meses de falecido, nasceu o rebento desejosamente esperado. Mudaram-se os hábitos do meu quarto: ele deixou de ser frio e escuro. Júnior precisava de ar puro. Abriram-se as janelas e cortinas. O sol tomou conta do horizonte e eu, a partir de então, já não sentia, com tanta freqüência, saudade das estrelas...


 
Wanda Cunha
Enviado por Wanda Cunha em 11/06/2020
Reeditado em 11/06/2020
Código do texto: T6974377
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