Raquel e o gosto do adeus Ok
Raquel
Eu nunca consegui tirá-la dos meus pensamentos. Entre nós, existia uma distância visceral, não somente a geografia que nos afastava. Havia diferenças sociais tão complicadas de transpor. Contudo, o rosto, a voz e o riso cristalino dela andavam sempre ao redor das minhas lembranças. O tempo já havia passado. Quatro anos. No entanto, às vezes, um gesto, um sorriso de alguém me fazia embarcar nas memórias e ficar pensando nela. Raquel. Raquel. Conheci a Raquel num destes bares de solteiro, alias, de reputação duvidosa de Porto Alegre, numa das muitas viagens de trabalho que possuía o hábito ou a obrigação de fazer para outros estados.
Nesta viagem específica era um congresso sobre saúde sanitária e técnicas de prevenções. Estávamos num grande grupo de médicos, alguns em busca de conhecimentos e técnicas novas e outros, simplesmente, aproveitando o dinheiro que a secretária de saúde do estado de Espírito Santo, propiciava aos médicos para aprimoramento profissional. Ficamos durante sete dias hospedados no hotel Plaza São Rafael, um dos mais chiques daquela cidade. Os dias eram preenchidos pelas palestras, debates, mesas-redondas e outras tantas coisas indigestas.
Era julho, então o grande problema eram as noites que eram frias com um vento gelado, aos quais os gaúchos classificavam, orgulhosamente, de minuano. Também contavam a história da Ana Terra, que a princípio, acreditei ser uma pessoa importante na vida dos gaúchos e que havia morrido. Mas, logo entendi que não era verdade. Depois de ouvir as risadas da recepcionista do hotel, ao me esclarecer que era uma personagem dos livros de um autor gaúcho, o Erico Veríssimo. É que a tal Ana Terra dizia: “noites de vento, noite dos mortos”, então comecei a não gostar de ficar no hotel nas noites de vento e como todas havia vento. Então, vagávamos de bar em bar apreciando a noite de Porto Alegre.
Nestas andanças conhecemos muitas mulheres, alias de todos os tipos, mas nenhuma como a Raquel. Na terceira noite em Porto Alegre, fomos a um bar com música ao vivo, indicado por colegas gaúchos. Não era dos melhores, quase uma espelunca, atulhado de gente com uma música alta. Então, eu a vi de longe. Dançando, sorrindo com os cabelos balançando ao som da música. Esqueci o bar cheio e o cheiro horrível de cigarro impregnando o ambiente, sentei, fiquei olhando para ela e tomando a minha cerveja. Fixei-me naquele balançar sinuoso, os cabelos ondulando ao som da música, porém ela não me olhava.
Fui chegando aos poucos, quando me dei conta estava frente a frente com a Raquel. Ela sorriu o primeiro sorriso das nossas vidas. Havia os olhos negros, um tanto amendoados, não havia somente beleza nela, era alguma que nunca consegui traduzir em palavras, mesmo dominado bem a gramática. Às vezes, quando ela falava o seu português, excessivamente, coloquial, apareciam nossas diferenças sociais. Éramos tão diferentes. A Raquel era jovem, eu era quase quinze anos mais velho. Ela era muito simples, quase simplória. Eu me criara num meio social em que a cultura, bons colégios e uma excelente universidade eram coisas comuns a todos. Ela estava comemorando naquele bar a entrada numa universidade pública, sua única chance de estudar, segundo as suas palavras. Eu havia terminando o doutorado em Genética, numa universidade da Europa. Enfim, independente de tudo isso, eu me apaixonei. dolorosamente por ela.
Raquel tinha ilusões, sonhos, vida. Eu nunca soube o que tinha. Ficamos juntos aquela noite. A menina bonita com seus sorrisos me pertenceu por alguns dias e noites. Mas o congresso terminou. Fui embora. Mas nos falávamos constantemente. A distância idealizou mais ainda aquela mulher pra mim. Comecei a visitá-la, mensalmente, quando havia oportunidade, lá estava eu ao lado dela. Todo vez que ia embora, pensava que não iria encontrá-la novamente. Eu precisava muito me livrar dela, apesar do que eu sentia, era cansativa aquela forma de viver. Não havia como eu continuar naquela vida dupla.
Porém, bastava ouvir sua voz rouca e suas gargalhadas engraçadas que tudo se transformava, ela tirava meu chão. Bagunçava minha vida ordenada e desordenava meus armários misturava meus conceitos e diluía meus preconceitos. Então, eu contava os minutos para vê-la novamente. Tudo isso durou doze meses. Um ano. Nesta época, a Raquel, já estava na faculdade fazendo psicologia e estagiava num órgão para menores abandonados. Havia mudado bastante, melhorou a gramática, o gosto musical e a forma de se vestir, alias tudo nela tinha se transformado, menos o meu fascínio por ela. Notava em seu rosto, certa tristeza, os sorrisos tornaram-se raros, os olhos ficaram mais escuros ainda, já não havia a transparência de outrora. Enfim, ela crescerá. Eu esperava a qualquer momento palavras, dúvidas questionamentos ou cobranças. Queria ouvir qualquer coisa, menos continuar vendo Raquel se liquidificar aos poucos de tanta agonia. Sabia que ela me amava, intensamente. Contudo, sabia que por trás daquela aparência simples e delicada, havia uma mulher forte e que jamais aceitaria continuar comigo naquelas condições. Sabia que as decisões de Raquel eram firmes e quase indissolúveis. Notava cada vez mais a dor devastando seu espírito. Ela pensava, pensava muito e não me dizia nada.
Então, depois de quase três meses em que mal nos falarmos, pois eu havia viajado para Europa de férias. Eu a procurei em Porto Alegre no apartamento dela, mas. não havia ninguém. Eu possuía a chave, entrei e esperei a noite e a manhã inteira, porém ela não apareceu. Sai em busca de noticias dela. Na Faculdade, ninguém sabia da Raquel, disseram que fazia uns vinte dias que não a viam. A família negou-se a qualquer informação, eles me odiavam. Não consegui obter nenhuma informação. Voltei para minha cidade, não podia ficar mais tempo em Porto Alegre. Contratei um detetive. Ele a procurou durante seis meses. Nada. Ela foi embora, não de maneira branda, como um incêndio que vai se apagando aos poucos, deixando cinzas pelo caminho. Dando pistas do fim. Mas, repentinamente. Como quem foge ou morre.