Náufrago coração

Não fazia muito tempo que havíamos chegado naquela taverna repulsiva. O capitão já estava bêbado mesmo antes de atracarmos. Estávamos apenas algumas milhas do nosso destino final, mas ele insistiu que precisávamos comemorar a cruzada do Atlântico. Por mim, teria seguido viagem, mas eu não passava de um simples marujo que estava ali somente para cumprir ordens.

Sentei-me em uma das mesas vazias e tentei não demonstrar o quão desconfortável estava com a situação.

- Anime-se, Martin! - disse um dos oficiais dando-me um tapa forte nas costas.

Fui capaz apenas de retribuir com um sorriso forçado desejando estar morto a estar naquele lugar. Fingi dar um gole na bebida invisível enquanto observava a tripulação à distância. Perguntava-me como ainda poderiam ter tanta energia, pois eu estava exausto.

Eles riam com histórias tolas e batiam com força na mesa, tamanha era a empolgação. O barulho era incômodo para quem passara dias em alto mar sem um ligeiro ruído a não ser o som do motor do navio e da água quando se chocava com o casco.

Foi quando eu a observei ali, do outro lado, sentada à mesa com uma das mãos sob o queixo, pensativa. O que fazia num lugar tão asqueroso como este? O batom e o vestido preto e vermelho realçavam sua pele clara e cabelos negros.

O balconista se aproximou para oferecer-lhe uma bebida e ela recusou com um sorriso simpático. E que sorriso...

Cogitei a ideia de ir até lá me apresentar, mas afugentei no mesmo instante, pois como poderia? Oras, eu sou patético! Nunca fui bom em assuntos que se tratam de coração. Já havia me enganado tantas vezes por me perder em minhas próprias desilusões que não poderia cometer o mesmo erro de novo.

Nem mesmo deveria estar aqui se não fosse por livre e espontânea pressão do Capitão e seus companheiros de viagem. Embora no fundo desejasse que ela notasse minha presença, pois bastaria apenas uma troca de olhares para que eu nunca mais deixasse aquela espelunca.

Mas por um breve momento era como se apenas nós dois existíssemos ali. Cheguei a pensar que aquela bebida imaginária não era tão imaginária assim. Estaria eu alucinando? Ou estava mesmo diante da mais bela donzela que já vira?

Delirei enquanto a observava imaginando como aquela história poderia terminar...

Ela finalmente notaria minha presença, nossos olhares se cruzariam e a jovem abriria um sorriso tímido. Pediria por mais um copo de vinho mesmo sabendo que eu continuaria a notá-la sem perder qualquer movimento que fosse. Então ela olharia novamente, mas desviaria o olhar para baixo com um riso mais aberto.

E este deveria ser o momento em que eu me aproximaria:

- Posso? – insinuando se poderia me juntar à mesa.

No entanto, com o medo tomando a frente, desviaria o caminho diretamente para fora da taverna em um ato covarde.

Dirigir-me-ia em direção ao cais sendo acompanhado pela lua cheia que iluminaria meus passos naquela noite e sentado num caixote de madeira, acenderia um cigarro e ficaria observando o leve movimento do cais do navio sobre a linha d’água. Jogaria o cap para longe, pois não me sentiria digno daquela farda e me afogaria junto com meu orgulho.

Não demoraria muito tempo até que ela viesse ao meu encontro. Seu perfume denunciaria a aproximação e minhas pernas ficariam trêmulas. Lembrar-me-ia que a última vez que me sentira assim foi durante uma tempestade em alto mar. Sim, ela viria, pois depois daquela humilhação, eu jamais ousaria voltar. Eu teria desistido de mim mesmo, mas por alguma razão ela me compreenderia.

- Posso? - perguntaria ela antes de se acomodar ao meu lado.

Eu mal conseguiria encará-la e o silêncio se manteria por mais alguns segundos até que ela diria:

- Vocês, homens do mar, ficam longe por tanto tempo enfrentando as mais difíceis tempestades que ao retornarem é como se acreditassem que não mereçam viver algo simples. Como se... Tivesse que ser desafiador o tempo todo.

- É porque talvez não seja assim tão simples. – retrucaria ainda com olhar vago que buscava por luz em meio a penumbra.

- Martin, olhe para mim. – sim, ela saberia meu nome. – Do que tem medo?

- Eu...

Então finalmente nos beijaríamos.

- “Moça, meu único medo é de nunca ser o suficiente”. - Ecoava a resposta em minha mente...

Bastou uma exorbitante gargalhada para me fazer voltar à realidade da qual gostaria nunca ter saído. Queria poder fingir que nada daquilo aconteceu, mas era inútil. Não seria nada fácil esquecer aquele rosto que por alguma razão despertara algo que não sentia há muito tempo. Aproveitei que ela estava entretida com o agito da taverna e saí pelos fundos.

Acomodei-me sob um barril de madeira e acendi um cigarro enquanto admirava o navio ancorado ao longe. Foi quando às sábias palavras de Miles, um veterano dos mares e um grande mestre, veio à mente:

- Sabe, Martin, um dia quando estiver no comando de seu navio, vai perceber que terá de atracar em diversos portos, pois muitos precisarão da sua ajuda, mas jamais se esqueça de que deverá sempre continuar seguindo em frente, pois um navio só ficará à deriva se estiver sem o seu capitão.

A verdade é que homens do mar assinam o compromisso com seu navio a partir do momento que decidem seguir este caminho e provavelmente Miles já considerava isso quando me deixou esta lição. Já tinha chegado longe demais para colocar tudo a perder agora por um rabo de saia.

- Achei que o encontraria aqui. Tome, para se aquecer. - Disse Edward me oferecendo uma caneca de vinho.

Edward havia se tornado meu melhor amigo desde que ingressamos na Marinha e às vezes tinha a impressão que sabia mais sobre mim do que eu mesmo. Ele possuía esse instinto protetor como se cuidasse de um irmão mais novo.

- Obrigado. – respondi sem muito entusiasmo.

-Acho que deveria falar com ela. – ele sabia.

- Não sei do que está falando.

- Ouvi dizer que é uma bruxa. – retrucou me ignorando totalmente.

- Ed... Eu quero ficar sozinho, se não se importa. – o interrompi antes que continuasse.

- Tudo bem. Eu só não entendo como alguém pode ser corajoso suficiente para enfrentar uma tempestade em alto mar e não conseguir enfrentar os anseios do coração. – disse ele voltando para a taverna, bufando.

Com as palavras de Edward, eu não sabia até que ponto estava usando o compromisso com a Marinha para fugir do compromisso com a minha própria vida. Pensava que talvez fosse melhor viver condenado pensando em como seria se não tivesse esse peso sobre minhas costas, pois para mim, a relação de um marinheiro com seu navio é a mesma de um padre com sua igreja.

Edward tinha razão, mas, ao mesmo tempo, eu estava ciente de que não poderia ter tudo que quisesse. Não é à toa que a bebida nos acompanha desde sempre. Que falte trigo, mas nunca rum ou cachaça. Precisamos dela para preencher vazios, a maioria deles sequelas pela falta de amor.

Nada poderia me garantir de que aquilo seria recíproco e eu já deveria estar acostumado a conviver com os riscos, afinal, viver no mar é estar disposto a encarar o perigo iminente. O que Miles diria se estivesse aqui?

Virei-me para trás uma última vez e através do vidro turvo e um tanto encardido, observei que um jovem a cortejava. Abri um leve sorriso, tomei o último gole que restava do vinho e fui o primeiro a embarcar naquela noite.

Giulianna Loffredo
Enviado por Giulianna Loffredo em 08/06/2020
Código do texto: T6971862
Classificação de conteúdo: seguro