OS ICONOCLASTAS NÃO VIOLARÃO
A SACRA IMAGEM DA MINHA MESTRA
A SACRA IMAGEM DA MINHA MESTRA
Lembro do meu tempo de estudante, em João Pessoa, no bairro de Jaguaribe...
Ousei gazear aula somente pra ver - ou tentar ver -, por mera curiosidade, numa casa próxima à escola, a imagem de uma santa (meio metro de altura e de cerâmica) que a vizinhança dizia estar chorando. A notícia já se espalhara pelo mundo leigo lá fora, mundo mais pagão do que cristão.
Perto da casa encontrei uma multidão que se comprimia, munida até de equipamento cinematográfico. Eu, jovem ainda em crescimento, me perdi em meio àquele frisson de gente aparentemente devota, e nada vi... Saí decepcionado...
Assim que saí, os passantes, apressados, comentavam com indiscrição que
- "A santa foi andar, caiu do andor e se quebrou!".
Não acreditei - mas voltei, ainda curioso, pra me certificar. Encontrei ali outro frisson, dessa vez de iconoclastas. Pessoas se engalfinhando na disputa dos cacos da santa despedaçada. Nada sobrou pra mim - logo eu que queria levar um pedaço daquela relíquia para a minha mãe...
Soube, depois, que a multidão pegara a santa, à revelia, a fim de levá-la para a igreja, onde haveria maior recolhimento para rezar. Aí, com o inexorável "um pega, outro pega", a santa cai e se despedaça. Foi a verdadeira versão desse novo ruge-ruge de gente querendo um pedaço só para alimentar a sua vaidade, certamente quando expusesse a sua relíquia. Teve quem saísse vendendo por cinquenta paus cada caco.
Não dava pra esperar a minha vez (que vez?). É que eu tinha pressa pra voltar, pois já havia perdido uma prova de português. Como justificar minha ausência diante da minha mestra?!...
Pensei... Raciocinei... Nem sei se raciocinei !...
Pra tentar me salvar, peguei um caco de alguma coisa na outra rua e, de volta à escola, explicando à professora o porquê de tudo, dei-lhe o caco de presente. Disse-lhe tratar-se de uma relíquia. Ela, muito devota, acreditou na minha prova de amor, aceitou e agradeceu. Até atendeu o meu pedido para, noutro dia, fazer uma prova de recuperação.
No dia da tal prova, ela, delicadamente, me devolveu o caco com o qual eu lhe havia presenteado. Estranhei o seu gesto, mas o presente que eu de fato queria naquele momento era obter uma boa nota na prova ! . . .
O caco estava bem embalado, formatado para presente.
E ela acrescentou, com sua calma e costumeira simpatia:
"Eu já soube que a santa era de cerâmica, seu espertalhãozinho. Leve então de volta esse caco de telha e dê de presente à sua mãe, entendeu?... Compreendeu?... Está me ouvindo?!" . . .
Prova não houve. Fiquei frustrado.
Mesmo reprovado, no outro dia levei-lhe uma flor: Meu "Obrigado, muito obrigado pela lição!". Reconhecimento de que eu raciocinei, tentei trapacear (com meu raciocínio errado) e ela sabiamente me julgou.
É que eu tinha dona Castorina como uma santa inquebrável e de uma bondade inquebrantável.
Deixou esta saudade em mim petrificada.
(fernandoafreire)
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Ousei gazear aula somente pra ver - ou tentar ver -, por mera curiosidade, numa casa próxima à escola, a imagem de uma santa (meio metro de altura e de cerâmica) que a vizinhança dizia estar chorando. A notícia já se espalhara pelo mundo leigo lá fora, mundo mais pagão do que cristão.
Perto da casa encontrei uma multidão que se comprimia, munida até de equipamento cinematográfico. Eu, jovem ainda em crescimento, me perdi em meio àquele frisson de gente aparentemente devota, e nada vi... Saí decepcionado...
Assim que saí, os passantes, apressados, comentavam com indiscrição que
- "A santa foi andar, caiu do andor e se quebrou!".
Não acreditei - mas voltei, ainda curioso, pra me certificar. Encontrei ali outro frisson, dessa vez de iconoclastas. Pessoas se engalfinhando na disputa dos cacos da santa despedaçada. Nada sobrou pra mim - logo eu que queria levar um pedaço daquela relíquia para a minha mãe...
Soube, depois, que a multidão pegara a santa, à revelia, a fim de levá-la para a igreja, onde haveria maior recolhimento para rezar. Aí, com o inexorável "um pega, outro pega", a santa cai e se despedaça. Foi a verdadeira versão desse novo ruge-ruge de gente querendo um pedaço só para alimentar a sua vaidade, certamente quando expusesse a sua relíquia. Teve quem saísse vendendo por cinquenta paus cada caco.
Não dava pra esperar a minha vez (que vez?). É que eu tinha pressa pra voltar, pois já havia perdido uma prova de português. Como justificar minha ausência diante da minha mestra?!...
Pensei... Raciocinei... Nem sei se raciocinei !...
Pra tentar me salvar, peguei um caco de alguma coisa na outra rua e, de volta à escola, explicando à professora o porquê de tudo, dei-lhe o caco de presente. Disse-lhe tratar-se de uma relíquia. Ela, muito devota, acreditou na minha prova de amor, aceitou e agradeceu. Até atendeu o meu pedido para, noutro dia, fazer uma prova de recuperação.
No dia da tal prova, ela, delicadamente, me devolveu o caco com o qual eu lhe havia presenteado. Estranhei o seu gesto, mas o presente que eu de fato queria naquele momento era obter uma boa nota na prova ! . . .
O caco estava bem embalado, formatado para presente.
E ela acrescentou, com sua calma e costumeira simpatia:
"Eu já soube que a santa era de cerâmica, seu espertalhãozinho. Leve então de volta esse caco de telha e dê de presente à sua mãe, entendeu?... Compreendeu?... Está me ouvindo?!" . . .
Prova não houve. Fiquei frustrado.
Mesmo reprovado, no outro dia levei-lhe uma flor: Meu "Obrigado, muito obrigado pela lição!". Reconhecimento de que eu raciocinei, tentei trapacear (com meu raciocínio errado) e ela sabiamente me julgou.
É que eu tinha dona Castorina como uma santa inquebrável e de uma bondade inquebrantável.
Deixou esta saudade em mim petrificada.
(fernandoafreire)
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