Jardim das esculturas
Para Fabiane.
Qual seria o momento exato do fim de uma história, o desenlace de mãos, a separação de pessoas que se conheceram e se amaram por muitos anos? Que força irresistível e que desdobramento secreto se faz nesse minuto. O instante exato do final? Como saber distinguir esse preciso e inevitável evento?
Ela soube.
O carro azul metálico, gasto pelo uso anterior, estancou na entrada do parque. Estávamos há alguns dias em Campos do Jordão. Cidade fria e alta das entranhas paulistas. Para dizer a verdade, Campos do Jordão não estava no auge do seu famoso inverno como imaginávamos e queríamos. O frio estava ameno, os dias pareciam repletos de um entorpecer verde. Uma cidade que me pareceu verde e de cor complementar ao azul metálico do carro que retomei, inadvertidamente, estacionado na entrada do Jardim das Esculturas. Ela, que vinha ao meu lado, calada e atenta na paisagem, nada comentou. Tive a noção exata de seu tédio quando me olhou de soslaio e perguntou onde estávamos. Eu não sabia. Aquele lugar era novidade. Andávamos de carro meio a esmo com um mapa da cidade improvisado. Um museu anterior que tinha uma pintura de Tarsila do Amaral, uma igreja com panos de vidro imponentes, um mosteiro em que as freirinhas cantavam, escondidas. Aquele mosteiro me deixou comovido demais. Quis chorar com as vozes que não sabia de onde vinham. Olhei pra ela do meu lado e também percebi que estava tocada. Mas nunca foi de chorar. Jamais. Algo começou a acontecer em nosso equilíbrio. Pressenti. Aqui na entrada desse jardim novo retomamos algum interesse.
Nessa entrada que paguei, já meio condicionado com meu papel de homem. Os homens pagam as contas, ela sempre costumava me dizer. Ela tinha razão nesse novo século? Prefiro acreditar que tanto fazia. Ela realmente nunca teve dinheiro que pudesse complementar nossas contas em comum. Paguei. O vigia nos entregou um folheto, um folder do lugar: Letícia Lerner, Polônia, esculturas... Recordo-me hoje que o tempo levou um pouco dessas indicações. O parque era o ideal de uma mulher que marcara sua arte e vida naquela cidade. Arte e vida: esquecimentos.
Ela me deu a mão esquerda e entramos no lugar. Ela sempre me dava sua mão esquerda para eu segurar. Ela é canhota. Nunca se queixou, pois eu sou destro e parecia que nosso apaziguamento de mãos nunca lhe incomodara. Hoje tenho a sensação de que ela nunca se queixou de nada. Ela tinha certeza de tudo. Sabia de tudo. Nunca passou insegurança nos seus gestos. Apertou minha mão e seguimos a estrada larga que nos levava a uma colina. Um tapete coerente que levava ao cume de uma crista também coerente, gramada com cuidado. No folheto dizia que aquele lugar era um resquício de Mata Atlântica, um lugar que os homens perdoaram, pensei. Um lugar sem final? A subida era pontilhada por araucárias altíssimas, que olhei de relance, pois o sol estava alto e o sol geralmente fere meus olhos deformados pelo ceratocone. A subida, marcada por bromélias, samambaias rebeldes, cactos hirsutos e orquídeas viris. Elementos vegetais que pontilham a Serra da Mantiqueira naquele vale profundo do Paraíba. Profundamente calada, ela olhava para todos os lados. Parecia sorrir. Seu sorriso, quando se abria de fato, revelava sua charmosa covinha no rosto. Seu rosto sempre me pareceu diferente. Desde quando nos apresentamos e nos beijamos pela primeira vez dentro do carro emprestado e velho do meu pai. Isso foi antes. Ela é bonita! O beijo, esmagado, insosso daquela noite não revelaria que chegaríamos tão longe. Apesar do ciúme e das minhas fraquezas, chegamos até aqui. Ela sorria abertamente. Seus dentes são perfeitos, seus olhos escuros e grandes eram duas esperanças contra minha própria cegueira. Apontava-me, intrigada, aquelas formas esculturais que demarcavam a subida lenta que fazíamos. Nossa subida era sempre lenta.
Queria tirar fotografias. Ela sempre adorou tirar fotos. Principalmente fotos em que ela sorria. Ela sempre soube que seu sorriso era o que de mais bonito ela possui. Sempre ficava bem nas fotografias. Mas constatava também que as suas melhores poses impressas ou arquivadas tinham sido tiradas por mim. Eu sabia exatamente o momento intacto de sua glória. Ela confiava em mim. Correu e encostou nas formas de cimento branco. Depois eu soube que as esculturas eram feitas de cimento e que foram pintadas com cal depois. As esculturas eram vazadas. Elementos rústicos de uma alma sensível da escultora que viveu ali. Ela não prestou atenção nesses requintes estéticos. Queria apenas parecer bonita nas fotografias que eu sempre acertava. Seu rosto crispou aquele sorriso perfeito. Sua covinha no lado direito do rosto, sobre a bochecha, surgiu. Seus cabelos, finíssimos, bailaram numa revolta castanha e escura. Quis que eu posasse para uma fotografia também. Não insistiu muito porque sabia que eu não gostava. Eu nunca sorria, ela dizia. Hoje, nas fotografias que tiram de mim, estou sempre sorrindo como se nessas poses ela pudesse me perdoar. Como se fossem súplicas de aceitação tardias. Depois de olhar suas próprias poses e certificar se tinham mesmo ficado boas, descartou as insatisfatórias e apagou no arquivo morto da máquina. O que não lhe satisfazia era sempre descartado. Estava sempre acima das avaliações. Descartava o que lhe vilipendiava antes de qualquer incômodo.
Nesses pequenos detalhes e particularidades de sua personalidade eu me comprazia. Realmente sentia certo assombro em tentar entendê-la. Ela não se preocupava em entendimentos e teorias. Ela era mais propensa à praticidade de um dia de sol ou um dia de chuva. Nada de arestas, nada de complicações, implicações. Subimos um pouco mais a colina coerente. As esculturas criavam um cenário em desalinho. O recorte das formas de cimento era apropriado para uma melancolia de almas esparsas. Soltamos nossas mãos. Eu tentava captar uma sensação de abandono nos aparatos brancos das esculturas maiores, nas minúcias táteis das formas menores. Ela andava na minha frente, respirando o ar das liberdades. Reparei que naquela manhã das montanhas, ela falava menos. Tinha menos imposições que de costume. Eu a amei desde antes, desde o dia que me falou na impossibilidade de amores eternos. Quando algo se quebra, quando uma confiança se perde. Nada será diamante. Ela me perdoou algumas vezes, quando derramei essa confiança por terra e mais. Várias vezes ela me perdoou. Talvez me amasse de verdade ou talvez apenas tivesse se acostumado como minha presença em sua entranha. Éramos entranhas. Talvez não fosse realmente importante eu segurar sua mão esquerda. O importante para ela era minha presença de conforto. Um pouco de minha aflição era o suficiente para seu apaziguamento de espírito. As esculturas eram várias. Reparei nas sombras que faziam no solo. Precipitar de matéria palpável e o sonho. Ela detestava o irreal. Nasceu para a simplicidade e a leveza. Nada de sonhos, devaneios à beira dos abismos. Eu sempre carreguei pedras morro acima. Sísifo. Agradava-me pensar que nunca na minha existência ela não estaria presente. Pedra. Agradava-me a ideia de que esse amor me pertencia e seria sim, diamante. Ela nunca se veria livre de nossas diferenças.
Não quero mais você. Disse-me. Como se pedisse uma joia, falou-me calmamente. Não gosto mais de você. Preciso seguir minha vida. O ressoar das palavras em minha senda, trouxe-me um pouco de incômodo, certa noção de falta de espaço. Preciso que você me esqueça. Não era para ser. Essas frases pareceram-me condizentes com o que ela sempre me mostrou. Eu sempre detestei frases feitas, clichês. E ela sabia disso. Ela falava realmente para me incomodar. Quero que você seja feliz. Perdoei-te. Siga sua vida. Preciso seguir a minha, preciso dançar. Você não sabe dançar. Você é todo engulhos. Sou. As palavras dela ficaram um pouco embaralhadas. Eu ameacei um pequeno ar de incrédulo, mas achei melhor me resguardar. A luz estava um pouco imprecisa no ângulo de seu rosto moreno, na cova da bochecha volumosa. Não quero mais você. Vamos embora desse lugar. Tenho fome. Tenho fome também. Minha fome é tão grande. Ela andou perto de mim esses anos todos e não, nunca pressentiu minha fome. Minha fome de eras. Vamos embora para a pousada. De lá voltamos para casa e você segue sua vida. Frases feitas. Sempre detestei frases feitas. Preciso resolver minha vida. Você me atrapalha. Você não me acompanha. Alcance. Não tenho alcance. Estive sempre do lado dela e ela não percebeu do cálice que sempre bebi. Bêbado de amplitudes que somos. Eu e ela.
Nas trilhas daquele Jardim de Esculturas não havia mais dúvida de que a perdera. Algo em seus gestos mostrava-me isso agora. Ela sempre soube. Andou metros na frente, absorta, olhando as esculturas de bronze. Material novo que, agora, sol maçante, mudava as interpretações do lugar. Não havia mais lugar para dúvidas. Ela erguia sua cabeça bela, os cabelos agressivos, cicatrizes amansadas nos movimentos. Ela seguia sozinha pisando, resoluta, o solo de areia e demarcação. Na parte inferior dessa trilha, ferida, uma mata lúgubre se desenhava no rumo do incerto. Eu não me lembro de ter tido depois hora mais grave em minha vida. Ela era amada. Ainda o é, eu sei. Sempre será. Pássaros rabiscavam de amargura meu céu infestado. Ela seguia na posse de um novo amalgamar. Eu detesto, ainda hoje, esse amar amalgamado. Eu ainda a amo, amor âmbar, e detesto sentimentos feitos. Enredei-me nesse sentido de hoje, de depois daquelas cenas. Depois daquele jardim invernal.
Nos pés das esculturas novas em bronze, afiladas, bases de tijolos sustentando a obra. Adentramos sem emoção uma construção, um teatro de arquitetura moderna e enormes paredes de vidro. Arquitetura que se ajustou aos passos inéditos dela. Que agora tomava posse de tudo dentro de mim. Minhas emoções estavam todas dependendo de um olhar dela. Um sinal. Um reconsiderar. Não houve. Algo se rompeu definitivamente. Mas sabíamos antes, principalmente ela sabia antes. Antes dessa viagem, antes desse Jardim de Esculturas. Antes do beijo esmagado no carro de meu pai. Sabia o tempo todo. Ela sempre soube que algo se perderia antes mesmo de qualquer revolta. Rebelião das mãos. Antes mesmo que as lágrimas se esgotassem em meu estoque. Amor e absurdo.
Ela, hoje, está fora do Brasil. A última notícia que tive dela, e isso me chega como uma precisão de imagem desfocada de estradas rápidas, é de que mora numa cidadezinha perto de Austin, no Texas. Uma constatação sulista e dolorosa de uma dor americana que ela, certamente, nunca sentirá.
Não conhece remorsos.
Um dia qualquer de março de 2013.