O feitiço
O feitiço
Alexandre Santos*
Eles se conheceram por acaso. O primeiro olhar numa visita comercial foi suficiente para incendiá-los. Helena, ainda muito jovem, vendia planos de saúde e Marcos, 13 anos mais velho, era proprietário de uma pequena empresa. A atração foi imediata. Pouco pesou a aliança que ele usava, pois, decidida, a fêmea soltou-se e Helena deu um jeito de voltarem a se ver com frequência. Um novo produto, uma pendência contratual, uma assinatura, um pedido, a entrega da carteirinha... todo dia ela voltava ao escritório de Marcos e, por uma dessas artes que os devotos de Afrodite conhecem bem, sempre no final do expediente, quando ele se preparava para deixar o trabalho. Ela, formosa e divertida e ele, bobo e guloso (como todo macho). Um dia, talvez compreendendo os sinais do amor, talvez compreendendo os mistérios da química ou arrebatado pelo magnetismo da vida, Marcos se fez impetuoso e a convidou para jantar, fazendo o jogo que ambos queriam. Era o que faltava. Em poucos meses, estavam juntos, apaixonados.
O início foi difícil para ambos. O namoro era delicioso e, ao mesmo tempo, perigoso e tumultuado. Sempre havia alguma coisa para atrapalhar. No começo, sem coragem para desvencilhar-se do passado, Marcos relutava em vê-la. Esforço inútil, pois, sem resistir aos chamados da pele e do coração, intimamente torcia pela chegada da noite, quando Helena aparecia bonita e cheirosa e, por instantes preciosos, enchia sua vida de cor, sabor, aventura, mistério e calor. Com Helena não era diferente, pois, igualmente excitada pela cor, sabor, aventura, mistério e calor que Marcos emanava, resistia às investidas de Átila, o antigo noivo que, inconformado com a separação, a importunava constantemente, e, ainda, suportava as zangas da mãe, que, talvez com justificável zelo, entrevia os perigos da paixão, condenando o namoro.
Mas, o amor foi mais forte e venceu. Na bela história que lutaram para construir, Helena e Marcos mereciam viver como nos contos de fada e serem felizes para sempre. Mas, não foi isso que ocorreu. Embora não tenha arruinado o amor, a combinação de forças que movem o mundo dos homens e com aquelas que perturbam a cidade dos deuses conseguiu separá-los, num processo silencioso, sem dar-lhes qualquer possibilidade de defesa. A coisa aconteceu como se não tivesse acontecido.
Pouco depois de chegar em casa, radiante como o anel que recebera junto com o pedido de casamento, Helena recebeu o telefonema. A voz de Átila era inconfundível. Antecipando a qualquer palavra do ex noivo, Helena pediu que ele não estragasse o dia mais feliz que já vivera e, avisando sobre o casamento iminente, bateu o telefone com um simples “adeus, Átila”. Ainda com o telefone suspenso, com a cabeça a toda, Átila chorou. Que mal fizera para merecer tamanha infelicidade? Helena, a mulher que amava desesperadamente, o desprezara e casaria com outro homem. Atormentado pelo ciúme, ruminou rancores, rogou pragas. Pensou em tudo. Pensou na morte do homem que teria Helena, pensou em matar o amor, pensou até em acabar com a própria vida. Por fim, sem apagar o ódio que tinha dentro de si, resolveu consagrar-se em celibato. Esperaria Helena eternidade afora até que ela fosse inteiramente sua.
Ao tempo que, coração em festa, Helena e Marcos trocavam o sim, prometendo-se amar por toda a vida, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza até que a morte os separasse, Átila mergulhava a esterilidade monástica, firmando os votos pelos quais entregava o que lhe sobrava de vida à causa de Deus.
Embora, para muitos, o tempo seja o senhor da razão amainando perdições e paixões, por mais que os ponteiros girassem e as estações passassem, nada mudava para Helena, Marcos e Atila, que permaneciam perdidamente apaixonados. Marcos não saía da cabeça de Helena, que não saía das cabeças de Marcos e de Átila. Para Marcos, a alegria acontecia à noite com a chegada de Helena, quando, mesmo cansados do trabalho, se entregavam a mais louca paixão. Para Átila, a alegria nunca acontecia. Longe da mulher que amava, a vida era monótona, os dias insossos e as noites solitárias.
Meses a fio, cruzando madrugadas insones, revirando o corpo encolhido numa cama estreita em meio a recordações felizes e sonhos frustrados, Átila deixava emergir a revolta de um homem marcado pelo ciúme e pelo despeito. Nestes momentos, sem poder fugir de si mesmo, ele se deixava guiar pelos demônios. Nem as orações obrigatórias continham o “se não for minha que não seja de ninguém” – um mantra raivoso que repetia à exaustão até ser vencido pelo sono. Houve dias que, inflado por fervores que nem ele compreendia, Átila prosseguia a ladainha até o chamado dos sinos e, com o corpo cansado e cabeça confusa, partia para a capela. Na santa missa, ainda com a oração dos abandonados martelando-lhe a cabeça como um disco riscado, Átila se juntava ao coro dos confrades e, mecanicamente, entoava o amém requerido pelos rituais.
Enquanto Átila amargava a solidão e ruminava pragas, do outro lado da cidade, entre um arrulho e outro, os pombinhos aproveitavam o tempo cada vez mais escasso para passear no shopping. Na vitrine, as joias. Ah! as joias. Como eram bonitas e caras. As fotografias do mundo. Ah! as viagens. Como deveriam ser agradáveis e... caras. E os carros importados? Lindos... e caros. Tudo tão perto dos sonhos e, ao mesmo tempo, tão longe dos bolsos. De repente, Helena e Marcos perceberam que, fora do ninho de amor, não eram nada. Sem dinheiro, não tinham como realizar os novos desejos. E, como que num estalo, a vontade de realizá-los aflorou em ambos. De um instante para o outro descobriram que queriam tudo e queriam muito mais. Uma ambição desenfreada espocou nos dois e, sempre apaixonados, quiseram o mundo para si. Fizeram, então, um pacto: se embrenhariam na vida para ganhar dinheiro e completar a felicidade que queriam e, sem dúvidas, mereciam.
No outro lado da cidade, os sinos badalaram, convocando os fiéis e os anjos.
A mudança foi imediata. Na empresa, Marcos diversificou a linha de produtos e partiu para conquistar novos mercados, expandindo os negócios por todo o país. O dinheiro veio com os novos clientes. Aqui e ali, um novo contrato requeria sua presença e, cumprindo a parte que lhe coube no acordo, não saía da trilha dos tostões na busca dos bilhões que o aguardavam além do horizonte. De sua parte, no emprego, Helena disputou as promoções que, até então, desdenhava, Em pouco tempo, após um curto período à frente da gerência local, a vendedora eficiente que fora até pouco tempo assumiu uma diretoria nacional da empresa. O salário e as comissões receberam muitos zeros. E Helena e Marcos ganharam asas e, sem desvios, singraram os caminhos da riqueza que desejavam. Bem sucedidos, puderam, enfim, fazer as compras que queriam. A falta de dinheiro deixou de ser problema para eles. O tempo todo apaixonada, Helena comprava os mais belos presentes para Marcos, que, igualmente apaixonado, comprava os mais belos presentes para Helena. Sempre bem vestidos e com algum rico mimo para o outro, viajavam mundo afora em busca de mais riquezas. Alguns diriam que tinham alcançado o paraíso que procuravam.
Havia, no entanto, um problema: Sempre empenhados em reuniões e viagens, eles nunca se encontravam. Quando Helena estava no Recife, Marcos estava fora dele e quando ele estava, quem estava fora era ela. Na exuberante Avenida Boa Viagem, abarrotada dos confortos que o dinheiro pode comprar, a cobertura de seis suítes estava sempre capenga, pois um dos donos nunca estava em casa. Um dia, depois de mais de seis meses sem se verem, eles quase se encontraram no aeroporto dos Guararapes. Se não estivesse na sala de espera, onde amargava o atraso de mais de três horas do voo que o levaria para uma permanência de alguns dias em Roma, Marcos teria avistado Helena, que chegava de Bruxelas para passar alguns dias em casa.
A distância não mudou as coisas. Enquanto, recluso no convento, Átila desafiava os santos vivos e mortos e, em meio a rosários e blasfêmias, remoía a amargura repisando o “se não for minha que não seja de ninguém” como se oração fosse, Helena e Marcos continuavam apaixonados, saltando de negócio em negócio para ganhar as fortunas que se prometeram. Diariamente, Helena e Marcos se falavam ao telefone. E se falavam muitas vezes. Entre uma reunião e outra, de algum aeroporto ou hotel, eles se ligavam e, como se fossem os mesmos pombinhos de sempre, renovavam juras de amor. Estranhamente, embora já fossem ricos e sentissem muito a falta um do outro, a ambição não arrefecia. Pelo contrário. A cada dia a vontade de ganhar mais dinheiro crescia e, sempre querendo mais, agiam como se a saudade pudesse ser suportada indefinidamente.
Mergulhado em tormentos e maldições, Átila não sabia o quanto sua praga era poderosa. E, sem saber que durante todo aquele tempo, embora não fosse sua, Helena também não era de Marcos, se carcomia na raiva. “Se não for minha que não seja de ninguém” dizia e repetia milhões de vezes, atormentando os anjos que o protegiam e os demônios que o insuflavam. A maldição rogada por Átila se renovava diariamente e, como num espelho infernal, a ambição também se renovava em Helena e Marcos, que não paravam de trabalhar duro para ganhar mais dinheiro. As coisas não mudavam nem quando, entregue às mais ardentes febres, Átila, que definhava no ódio, só conseguia murmurar as imprecauções.
Mas, como diz o velho provérbio, não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe.
Um dia, ao deixar o centro de convenções do Hotel Excelsior, em Paris, de repente, Helena foi tomada por uma incontrolável saudade do marido. Como que surpresa por estar tão longe, jogou a pasta na cama, correu ao telefone e tentou falar com Marcos. Não deu sorte. A linha estava ocupada. Do outro lado do Atlântico, naquele exato momento, também afogueado por uma vontade insuportável de ver e ter a mulher que amava, Marcos abandonara a reunião no Marriott Hotel e tentava ligar para ela. Até conseguirem completar a ligação, viveram minutos de muita ansiedade.
Eles jamais souberam, mas, no dia seguinte, quando se encontraram no aeroporto dos Guararapes para nunca mais se separem, o corpo de Átila baixava a sepultura da Ordem do Carmo, no cemitério de Santo Amaro.
Acabara a maldição.
(*) Alexandre Santos é presidente do Clube de Engenharia de Pernambuco, ex presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural