O furacão que derrubou a república
O furacão que derrubou a república
Alexandre Santos *
Ele não era nenhum santo. Tinha, até, a merecida fama de garanhão. Daquela vez, no entanto - se necessário, podia, até, jurar em confissão ao bispo MarcoNassau -, era inocente. Pelo menos, foi inocente até a sacanagem começar, ainda nos tempos em que governara o Piauí.
Ainda ressabiado com a reação extrema (porém esperada) do irmão BobPaschoal - que, ao saber da indecência, aos berros, dissera a um amigo comum, não admitir ser chifrado pelo próprio irmão e, como vingança, iria escancarar segredos capazes de derrubar o governo -, o presidente Marcello Vinicius Salles Paschoal lembrou de como, há pouco mais de dois anos, depois de cortejá-lo acintosamente por quase um mês, a cunhada Laura Lins Paschoal (como se não soubesse quem eles eram ou só ligasse para as coisas da vulva), finalmente conseguiu seduzi-lo e, praticamente, o estuprou no salão de despachos do Palácio do Governo, comendo-o de todas a formas possíveis, imaginadas e ainda por imaginar, deixando-o experimentar o sexo mais louco e prazeroso possível neste mundo de Deus. Só naquele começo de noite, extenuado, com as forças sugadas pela loba que o cavalgara sem descanso ou pudor e completamente arrebatado pela paixão advinda da carne, Marcello descobriu que, sem freios ou limites, se quisesse, LauraLins podia dobrar a resistência de qualquer homem, incendiando xacras adormecidos, fazendo enrijecer aquilo que jazia e devia permanecer flácido e levando-o a esquecer protocolos e a desrespeitar convenções.
Daquele momento em diante, vivendo um misto de arrependimento e uma deliciosa sensação de quero-mais, o então governador do Piauí passou a desconfiar de que eram verdadeiras as antigas histórias contadas à boca miúda nos rega-bofes do HigthSociety sobre a ninfomania das mulheres da família Lins, a começar pela velha CarlotaLins, tia-avó de Laura. Segundo o falatório sufocado pelo politicamente-correto, mesmo casada com o velho senador Júlio AlvesSouza, a jovem Carlota não perdia a chance de aplacar a fúria vinda das entranhas em chamas, tendo engolido amigos, clientes, visitantes, primos, sobrinhos e, até, um time de futebol que jogava em frente ao casarão da família nos arredores de Teresina. Lembrando o sacolejo incontrolável da cunhada, Marcello Vinícius Salles Paschoal não tinha porque duvidar de que, como muitos chegaram a insinuar em Fortaleza, Carlota tinha sido a mulher que matara o governador VenceslauPinto de tanto prazer sobre o tapete esparramado na sala ao lado do escritório no qual, com o peito decorado com um monte de comendas e medalhas (na testa, os adornos eram outros), o senador Júlio AlvesSouza padecia o tradicional chá de cadeira para a audiência semanal que o chefe do executivo fazia questão de lhe conceder.
Embora soubesse do vulcão que carregava desde sempre e dos boatos sobre estripulias da avó e, também, [estripulias] da mãe (que, segundo constava, sem ligar para o estado civil de ninguém, possuíra quem quis e quem a quis, incluindo alguns dos melhores partidos do Estado), Laura alimentava dúvidas sobre as histórias atribuídas à sua tia-avó -, que, de tão mirabolantes, não podiam ser verdade (mas, eram). De qualquer forma, com uma ponta de orgulho, no fundo, ela adorava a história de que, ao ser mandada para o internato em Teresina (o objetivo verdadeiro não era fazê-la estudar, mas, sim apagar a fama por ela adquirida ao conceder a virgindade ao primeiro namorado e, depois, usar tantos quantos quis), sua avó quase desbancava a própria Carlota, mantendo-se na ativa mesmo após colocar aliança na mão esquerda. A carga genética era muito forte e, vinda da avó, depois de passar pela mãe (que, igualmente gulosa, desfrutou muitos garanhões, provando, segundo más línguas, até o nervo viril do, então, diácono MarcoNassau), chegara à Laura, legítima herdeira e sucessora do clã, que, honrando as antecessoras, deu curso à índole das fêmeas da família, fazendo valer os encantos e vontades incontroláveis e inesgotáveis que herdara, sem qualquer freio.
Como acontecera de outras vezes, depois experimentar o cunhado, Laura perdeu o interesse e, até, pensou em se afastar do Palácio do Governo, mas já era tarde, pois, com o xacra atiçado, Marcello a quis mais uma vez e a quis a cada minuto. De sua parte, a perda do interesse não subjugava o gosto pelo affair e, sempre que convocada, Laura corria ao gabinete do cunhado, onde as coisas corriam soltas, cada vez com maior frequência. A lua de mel secreta passou e, mesmo querendo-a como um louco, intumescendo o bruto à simples lembrança da cunhada, Marcello deixou de ver Laura, pois veio a desincompatibilização e veio a campanha eleitoral e veio a vitória e veio a posse e veio a mudança para Brasília. Afogado pelas exigências do cargo, Marcello se conteve até o singelo 'nunca estive com um presidente' - frase única do e-mail sequer assinado. O homem ficou doido e - esquecido de que, agora como presidente, tinha todos os passos seguidos por um séquito de seguranças anônimos e acompanhados por um bando de pajens e de bisbilhoteiros avulsos - cometeu o erro que, por fim, embora tenha proporcionado os mesmos prazeres enlouquecedores de sempre, o levou a perder a namorada e, também, o mandato recém conquistado.
De fato, como sempre ocorre nestes momentos, ainda naquele dia, um telefone sem fio iniciado no Palácio do Jaburu levou a traição de Laura aos ouvidos de Roberto Augusto Salles Paschoal, em Teresina. BobPaschoal, como era conhecido na alta sociedade do Piauí, já estava acostumado às traquinagens de Laura, mas jamais imaginaria que ela tentaria aplacar seu furor uterino com Marcello e, mais ainda, que, por maior que fosse a tentação, seu irmão aceitasse plantar um chifre a mais na sua testa galhada. Sem suportar a decepção e a humilhação, BobPaschoal jurou destruir a carreira política do irmão Marcello.
E foi o que fez.
Ainda naquela semana, assustou as redações dos principais veículos de comunicação e as principais lideranças da oposição com um detalhado dossiê, relatando e provando as espertezas cometidas pelo irmão ao longo da carreira política, que, ao custo de muitas coisas erradas, o levara ao Palácio do Planalto. Daí à abertura de um processo de Impeachment e à destituição de Marcello do cargo de presidente da república foi uma questão de meses.
Anos depois, enfrentando o ostracismo próprio das planícies, longe do burburinho e das fofocas palacianas que tanto conviveu, Marcello se dedicou à leitura e, ao ler a biografia de D. Pedro, deteu-se na figura da Marquesa de Santos e, encontrando algumas semelhanças com sua própria vida, viu que não foi o primeiro governante brasileiro a perder o prumo por um rabo de saia.
(*) Alexandre Santos é ex-presidente da União Brasileira de Escritores e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural