Uma mola encolhida
“Ela não era mais uma menina e ansiava por alcançar a graça e a beleza da feminilidade".
Sherwood Anderson
Júnior Carlos era baixo e magro, tinha cabelos escorridos e os olhos de peixe morto e frito. Quando metia uma ideia na cabeça era como um gato no cio. Ficava indócil, gritava, pulava e corria a cidade inteira a fim de se livrar da ideia como se livrasse de uma sarna que o fizesse se coçar o tempo todo. Há alguns meses Júnior tinha apenas uma ideia na cabeça: queria beijar, deitar e rolar dentro do seu carro novo com Glorinha.
A moça desconfiava que ele estivesse mesmo tendo pensamentos a seu respeito. Por isso, o evitava como quem evita uma doença. Sabia que ele era um tipo de homem ciumento, pegajoso - como as amigas e ex-namoradas disseram. A intuição dela a fez evitar os locais onde poderia, ao menos, avistá-lo. Por isso, Glorinha ficou aflita ao ver o carro azul-metálico estacionado na praça em frente à sua casa naquele sábado à noite.
Ele sentado ao volante sentiu o cheiro das árvores da praça e sobretudo um leve aroma de perfume feminino no ar. Ah!, ele disse baixinho, “mulheres e seus cheiros anunciando novidades”. Olhou o relógio e concluiu que era hora de uma mulher jovem, bonita e saudável ir à rua se divertir. Então, ele saiu e ficou escorado na porta do carro.
Glorinha era alta, morena e gostosa como disseram os amigos dele que, no passado, haviam levado ela para casa depois das festas. O melhor de tudo, eles explicaram, era o gosto dela. Qualquer parte do corpo cheira a doce, a chocolate em calda. Tudo mesmo, eles afirmavam. Até onde a língua alcança aquela morena é um grande pedaço de bolo recheado e implorando para ser comido.
Um nó grande e ansioso subia e descia pela garganta dele. A espera só aumentava o desejo. De repente se deparou com o mais simples e inabalável obstáculo. Como, pelo amor de Deus, ia conseguir fazê-la entrar no carro? Trocara com ela apenas um ou dois bons dias ou boas tardes, talvez duas dúzias de ois. Foi no tempo em que trabalhava como repositor no mercadinho da vila onde Glorinha era caixa.
Agora ela havia sido promovida a gerente. E ele tinha tido sorte como vendedor de planos de saúde. Ela era uma mulher que tinha atitude, não se pode negar, mas ele possuía um carro. Adianta alguma coisa, Júnior pensava, ser toda cheia de pose e beleza e no fim das contas dormir sozinha ou mal acompanhada? Isso era o que ele pensava. Do outro lado da rua, dentro da casa, Glorinha pensava diferente.
Puxou as cortinas e deu uma última olhada para fora. Retorceu o canto da boca e alisou a blusa com a mão firme. Em seguida pegou o celular e discou um número. Falou alguma coisa e sorriu enquanto falava. Ela também esperava, mas não era uma espera aflita e ansiosa. Era uma espera calma, limpa e transparente como só pode ser aquela que parte de um coração em paz.
Há muito tempo ela não mais se preocupava com a quantidade de namorados ou de ficantes que uma garota pudesse ter. Apesar de algumas de suas amigas, principalmente as mais afoitas, afirmarem que em matéria de homem a quantidade é sim um passo em direção à qualidade, Glorinha passou a discordar delas com base no seguinte pensamento: quanto mais tempo você permanecer com um homem mais rápido você conseguirá conhecê-lo e despachá-lo, se for o caso. A menos, evidentemente, se o homem se parecer com aquele que se encontra lá fora encostado no carro igual a alguém que se agarra numa boia com medo de afundar.
Glorinha olhou pela última vez no espelho e saiu. Trancou a porta e colocou a chave na bolsa. Caminhou calma e resolutamente em direção à calçada. Como era uma moça determinada resolveu tomar a iniciativa. Ao passar por Júnior o olhou nos olhos e lhe disse boa noite. Ele, pego de surpresa, balbuciou um boa noite frouxo e tímido. Já que ela andava devagar e despreocupada ele arriscou perguntar se ela não queria uma carona. Voltando-se para ele, com toda a disposição de corpo e mente ela disse que não, obrigado, que estava esperando alguém.
Ela foi se distanciando dele como a lua se distancia no alto do céu no decorrer da noite. Apesar de deixar no ar um perfume leve que sugeria felicidade, prazer e paraíso, Júnior ficou triste, muito triste. Em seguida ficou irritado. Teve vontade de dizer besteira, de gritar palavrões, de segui-la, primeiro a pé e depois de carro. Pensamentos hediondos que sugeriam crime: poderia sequestrá-la, atropelá-la ou levar a moça para um terreno baldio, quem sabe?
Glorinha caminhava indiferente à dor dele. Mas, em momento algum ficou indiferente à pessoa dele. Sabia que Júnior, ciumento como ele só, era capaz de fazer besteira. Por isso, e pela primeira vez na noite, sentiu a ansiedade da espera. Procurou o lugar mais iluminado da rua, próximo à lanchonete da esquina, e esperou. Não quis esperar o outro em casa, pois não queria que ele visse Júnior e seu carro como dois claros sinais de que estava sendo disputada. O sentimento que ela começou a sentir pelo outro era inocente e pujante e como toda coisa inocente precisa ser bem alimentada e cuidada para só depois ser testada e aprovada ou reprovada na escola da vida.
Estava lendo as recentes mensagens de celular quando o outro chegou. Ela levantou os olhos e viu o enorme sorriso estampado no rosto dele. Ela retribuiu o sorriso e não pensou duas vezes antes de montar na garupa da bicicleta dele. Enquanto grudava nas costas firmes e delineadas do rapaz ela sentia sob os dedos aquela umidade e aquele cheiro tão seus conhecidos: suor. Gargalhou alto e esticou bem as pernas para não entrar no raio da bicicleta. O rapaz ainda deu uma empinada antes de entrar numa outra rua. Lá, de onde estava, Júnior esmurrava o volante e rangia os dentes.