Um anônimo triste e solitário na multidão festiva dos blocos de Carnaval - parte III

Passando novamente pela praça semi-arborizada, as suas narinas sensíveis sentiram um leve odor característico de ureia. Reparou que havia uma série de banheiros químicos dispostos lado a lado, azuizinhos, e uma fila considerável de gente, segurando a bexiga com certo esforço e impaciência. A situação chamou a atenção de Abelardo, pois se recordava nitidamente das folias passadas, em que as ruas eram banhadas constantemente a urina, de muitos colaboradores diferentes, como numa obra compartilhada e sem dono.

Esse fato atesta, sem sombras de dúvida, a grande liberdade masculina de aliviar-se num canto qualquer, como no tronco de uma árvore, providos que os homens são de um aparelho biológico altamente prático, sorte pela qual o sexo oposto não fora beneficiado pela natureza. Mas, engana-se quem pensa que na hora do aperto elas não se dão ao direito de, digamos assim, “descerem do salto”.

É o que comprovam as lembranças do anônimo Abelardo, quando, nos carnavais de sua infância, um grupo de mulheres rodeava a amiga, tentando sem muito sucesso impedir a visão dela, agachada, fazendo as suas necessidades físicas, bem ali, na via pública, que pipocava de foliões a todo instante. As moças reclamaram de dois homens, os quais as encaravam compenetrados, de braços cruzados, em tom de provocação e desafio, ao que eles devolveram: “se não gostam que olhem, vão mijar em outro lugar!”. “Aff, que escroto!”, rosnou baixinho uma delas, desviando o olhar, indignada com o fato de que não havia ninguém para intervir ao seu favor.

Nos últimos anos, contudo, a administração municipal soltou nas ruas alguns agentes, responsáveis por multarem os mijões de plantão, no intuito de coibir a prática coletiva de emporcalhamento da cidade. O serviço deles não era dos mais fáceis, pois para ser validado a multa, era necessário que o infrator flagrado fosse fotografado ou filmado pelos encarregados da fiscalização, mas de tal modo que não desse margem para queixas tipificadas como registro não autorizado da intimidade sexual. Só depois é que o agente solicitaria a documentação.

O valor era salgado o suficiente para doer no bolso. Nada menos que quinhentos reais era o valor da punição. A contrapartida da prefeitura, não obstante, foi disponibilizar sanitários portáteis em maior quantidade, para que o cidadão não fosse duplamente penalizado. Ainda assim, a ampliação da oferta não estava à altura da demanda, sempre altíssima. Mas o incômodo maior era, inequivocamente, a imundície e sujidade dos sanitários químicos, sem espaço para lavar as mãos, além de excelente vetor de infecções.

Como sempre, Abelardo observava, embora com certo asco, mas também com ar de troça, sentado no banquinho de madeira. A primeira latinha de cerveja fora esvaziada num piscar de olhos pela sede veemente que o acossava. Rompeu o lacre da tampa da segunda lata, e levou-a até a boca, bebericando pequenos goles. Um sujeito saíra do cubículo apertado e fedorento, enquanto o outro entrou apressado. Após alguns instantes, dejetos meio sólidos meio líquidos começaram a despencar num tanque localizado abaixo da privada. O ato fétido era ali escancarado para todos que compunham a plateia enojada.

Todavia, Abelardo degustava calmamente a bebida de puro malte, sem se alvoroçar. Pensou nas colegas do escritório, que certa vez conversavam sobre as medidas de higiene adotadas para driblar tais empecilhos. A Irene, secretária que não durou muito tempo na firma, dizia usar o banheiro de um bar ou restaurante próximo, preferível por ser menos pior. Ao que uma delas interveio, pontuando a inconveniência de ter que consumir algo como cliente. Foi daí que a Jussara do RH, com quem nutria antipatia recíproca, mas contida, comentou sobre um “banheiro de bolso”, um envelope descartável que uma amiga sua havia usado no carnaval de Salvador. Abelardo não pode esconder a admiração pela engenhosidade do produto, entretanto, da sua parte achava mais simples e econômico urinar dentro de uma garrafa plástica vazia.

Sossegado e de pernas cruzadas, enquanto tomava o último gole de álcool, Abelardo teve o seu olhar disperso capturado por uma mulher que caminhava perto dele, em bando, com as amigas. A dona de medidas largas tinha um sorriso convidativo, daqueles que o nosso protagonista não recebera por nenhum momento sequer ao longo do dia. Talvez fosse o aspecto taciturno, o qual ele ostentava naturalmente, a causa do insucesso de Abelardo naquela ocasião. Procurava não pensar nisso. Para ele, bastava estar ali, sem pedir muito, evitando assim se frustrar. Ainda que a solidão o acompanhasse faz tempo e já se tornasse praticamente uma amiga inseparável, Abel não ficou alheio ao encanto de sereia que o espécime do belo sexo lançou a ele. Era por vezes árduo desviar-se desses feitiços, por mais que ele se considerasse imune. Foi preciso somente um instante para que aquela resignação amuada fosse logo esquecida e desse lugar a pensamentos lúbricos e molhados. Ela não se voltou para trás, mas o relance das ancas gordas e sacolejantes abriu o apetite de Abelardo. Começou a aumentar de volume, num crescente contínuo, até que por fim vazou pelas bordas...

Luna Conti
Enviado por Luna Conti em 03/04/2020
Reeditado em 03/04/2020
Código do texto: T6905082
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