Azul
Eu lembro como se estivesse lá: o céu azul como uma tela de pintor, a água verde e transparente, feito cristal líquido e ele ao meu lado quase como parte de mim. Era final de dezembro ou começo de janeiro - mesmo com a imagem viva depois de 35 anos, o contexto já não é tão claro. Mas não tem importância, o essencial ficou e é límpido como aquele mar.
Eduardo era o nome dele, um turista, dos que enchiam minha cidadezinha praiana quando chegava o verão. Foi na velha sorveteria do centro que a gente se viu. Ele falou comigo ou eu falei com ele – já não lembro por que ou sobre o quê – e a única impressão que tive foi que queria vê-lo de novo. É bom lembrar que aquele tempo era diferente, ainda mais numa cidade pequena. Um homem não podia se interessar por outro porque isso era algo entre uma anomalia e uma ofensa. Eu tinha 15 anos e estava começando a pensar que o jeito que eu olhava outros caras não era normal e talvez eu ainda pudesse ignorar isso por mais tempo se aquele garoto não tivesse aparecido na região.
Mas ele apareceu e não passou batido, com sua roupa de cidade grande e jeito de quem só conhecia a água pela piscina do condomínio. Na certa eu não parecia menos exótico aos seus olhos; um rapaz de pele queimada de sol, corpo esguio e mão rijas de ajudar o pai pescador a puxar as redes pra terra firme. Ainda hoje não entendi como a gente se entendeu; dois moleques nada parecidos, nenhum lá muito bonito ou esperto, só vagamente cientes do quanto eram diferentes dos demais. Talvez fosse o reconhecimento um no outro desse embotamento em especial que nos uniu mais que a atração. Fora que era verão também em nós; a primavera tranquila da infância dando lugar ao calor e intensidade da adolescência.
Quando o vi de novo parecia que a conversa era um teatro ensaiado que escondia as nossas intenções, tudo levando a um ponto que eu ignorava. No maior ato de coragem da minha vida perguntei se não queria dar uma volta na canoa do meu pai comigo. Ele aceitou e se ficou constrangido ou satisfeito escondeu bem. Chegando à água, ao contrário do que imaginei não fiquei nervoso - o barco e o mar já eram conhecidos, só aquele garoto era novo. O sol estava baixo e o Eduardo perguntou se o céu era sempre tão bonito ali. Eu respondi que dependia da época do ano e ele deitou no chão de madeira da canoa pra admirar. Não sei se foi a brisa, o som das ondas na praia ao longe, mas eu não senti embaraço algum de deitar ao lado dele enquanto a canoa balançava parada na maré baixa. Braço com braço, os pelos da perna dele encostando nos meus – acima de nós o céu azul feito uma turquesa, abaixo, o movimento tranquilo do mar e fora isso nada. Em algum momento houve um beijo, o meu primeiro, meio desastrado como eles sempre são, e então só mais quietude e aquela sensação nova de estar ao lado de alguém como nunca se esteve antes.
Depois disso ainda nos vimos algumas vezes, mas não nos despedimos quando ele foi embora perto de fevereiro. Com os anos notei que tive sorte dele ser só um turista. Nenhum de nós na certa saberia lidar com a situação naquela idade caso a coisa fosse mais longa e o modo como tudo ficou na minha mente com o tempo fez a sua figura parecer quase irrelevante. Eduardo não é uma pessoa, é um evento - uma manhã de final de dezembro ou início de janeiro do começo da minha vida num mar semitransparente sob um céu tão azul que quase doía olhar. Eduardo foi uma iniciação e um momento que nunca mais vai acontecer. Um verão que nunca vai ser encerrado pelas chuvas de março.