Ele & Ela

Ele...

A porta estava aberta e pela fresta eu ví que ele ainda estava dormindo. Decidi me aproximar para vê-lo de uma forma diferente de como sempre o via. Com roupas de dormir, ali largado na cama, tão vulnerável, senti alguma doçura na face que normalmente se mostrava austera. Ele quase não sorri.
Os cabelos em desalinho e a barba por fazer o fazem mais bonito.
O que estaria vivendo em seus sonhos tão profundos?
Por um instante imaginei-me em seus devaneios... Mas meus pensamentos diminutos foram interrompidos por passos apressados que se aproximavam. Resolví sair dos aposentos sem ser percebida.
Amélia passou por mim e perguntou se tinha terminado o serviço no segundo andar. Baixei meus olhos e confirmei a conclusão das tarefas domésticas, informando à governanta que faltou somente o quarto do patrãozinho, pois ele não havia deixado o leito ainda.
- Desça e ajude na cozinha, Ana!
Ordenou-me.
Cheguei próximo ao fogão de lenha e sorví um copo de água fresca. Olhei longamente para sol que já cobria a serra verde.
João passou com a carroça repleta de lenha e acenou com os olhos sorridentes. Estendeu a mão e gritou um recado sobre voltar mais tarde para uma prosa. Sorri sem graça.

***


Ela...

Ela estava cantando enquanto cozinhava. A música era bela mas me incomodava.
Perguntei se era sempre feliz assim e ela se calou pedindo desculpas. Tive vontade de recomendar que continuasse, mas Jeremias chegou com uma carga de café e me afastei dalí.
A lembrança da moça de mãos delicadas, voz doce e olhos de mel não me saíam da lembrança.
As canções que ela canta lembram-me mamãe... Ela gostava de cantar para nós quando nos deitávamos no final do dia.
Sim, talvez seja isso que me incomode. Traz lembranças da infância que aos poucos vão se apagando da minha memória. Eu tinha nove anos e sofri muito com a partida inesperada de minha mãe.
Certo dia sonhei que Ana me olhava dormir. No sonho ela parecia um anjo a me velar. Suas mãos tocavam os meus cabelos e sua voz macia sussurrava em meus ouvidos coisas sobre a hora de despertar e, num jeito carinhoso que lembrava os hábitos maternos, alertava-me para que eu fizesse a barba e ajeitasse os cabelos... Acordei desejando que aquela moça compartilhasse a cama comigo, não só aquele momento, mas todas as horas do dia, a vida enfim.
A medida que ia me vestindo, calçando as botas e saindo para mais um dia na fazenda de café, estes desejos iam se desfazendo e a lucidez ia tomando o espaço da minha mente como o sol que ia se derramando crescentemente naquela serra.
Cláudia Machado
Enviado por Cláudia Machado em 25/03/2020
Reeditado em 02/04/2020
Código do texto: T6897238
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