futura conversa com a terapeuta

     “E então, você não desiste mesmo, né?”
     “Não,” eu dou um sorriso olhando para meu copo na mesa antes de voltar a encarar seus olhos. “Infelizmente, talvez. Mas digo com a mesma veemência dessa bebida que, ao nascer, fui abençoado com a competitividade.” Dito isso, tomo um gole do uísque.
     Ela sorri. “Como a vida tem te tratado?” E apoia a cabeça em uma das mãos, com o cotovelo em mesa.
     “Do jeito que você pode ver em meu rosto.” Tiro do bolso de minha camisa o box de Marlboro vermelho e acendo um cigarro. Apesar de ser uma noite quente, o ambiente e a companhia pedem por mais ardor em minha alma.
     “Vejo que voltara a um velho hábito, que quando me conheceu dissera ter abandonado.” Ela, depois que guardo o isqueiro em meu bolso da calça, se afasta e cruza seus braços. Pela primeira vez desde que sentamos seu olhar foge de minha atenção. Eu dou um sorriso a isso, apesar de não desejado.
     Eu bato as cinzas ao chão e viro o rosto para que a fumaça não vá de encontro ao seu. Seria o mínimo que eu poderia fazer. “E você alguma vez largara aquele seu?”
     “Tá falando da maconha?”
     “Sim.”
    “Mas não é tão nojento e nocivo ao ambiente quanto essas milhares de toxinas que você está inalando e soltando ao ar. Sem falar que depois você joga o que sobra no chão.”
     Eu dou um sorriso, voltando meu olhar novamente a meu copo.
  “Você joga a guimba no chão, né?” Seus braços ainda estão cruzados. Mesmo com os óculos, consigo ver claramente suas intenções. E isso não me impede também de me lembrar a nossa última conversa. Houveram palavras refletindo o desamparo, talvez sinônimos mais diretos e intensos, sem a metáfora da chuva escorrendo na janela ou a mesma esquina com a mesma mulher presente nas madrugadas. Mas a lâmpada do poste permanecia acesa. Uma luz amarelada, como de costume, clareando nossos desejos, iluminando o caminho do arrependimento, afastando o perigo que acordava juntamente com a lua.
     “Sim,” eu respondi e bebi novamente. “Eu jogo a guimba no chão.”
     “Você sabe que não vou te beijar, né?”
     “E o que te leva a devida decisão tão precipitada?”
     “Você realmente não sabe ou tá se fazendo de idiota? Porque eu sei que a segunda coisa você adorava fazer, e consegue disfarçar muito bem quando quer.”
     “Digamos que dessa vez eu não saiba, você poderia responder a minha pergunta?”
     Ela consegue revirar os olhos tão forte que o amargo do uísque volta para meu próximo gole, me remetendo a primeira vez que o bebi. Fico próximo de fazer uma careta. Meu fígado decide que essa é uma boa hora para me lembrar o quanto me odeia. Eu trago novamente o cigarro, antes de retornar o copo à mesa. “Isso,” e então e ela aponta para meu cigarro.
     “Até a hora de você me beijar, você já terá esquecido isso como alguém lembra do ex-namorado na primeira bebedeira pós término.”
     Ela volta a sorrir, assim como a me olhar do jeito que estava antes que eu acendesse o cigarro. “Disso você sabe, né?”
     “Pra dizer a verdade? Não. Nunca fui de ligar, mandar mensagens alcoolizadas à noite. Sou conformado, e disso você sabe.”
     “Então por que estamos aqui?”
     “Ué? Eu gosto daqui. Já afoguei muitas mágoas nessa cadeira, no bar lá dentro, naquela outra cadeira ali também, na árvore do outro lado. . .”
     “Não, idiota, por que eu e você estamos aqui? Se você é tão conformado, não deveria ter aceitado que fui embora?”
     “Ah, isso,” posso ouvir a nicotina e o tabaco, e as outras substâncias tóxicas que esse objeto tão pequeno carrega, sendo queimado. É como se tudo tivesse ficado quieto e a minha seguinte resposta fosse salvar uma vida. A minha vida, no caso. “Bom, você me atendeu. E é por isso que estamos aqui.”
     “E se eu não tivesse aceitado o seu convite?”
     “Bom, supondo que eu fosse menos convencido, eu estaria aqui do mesmo jeito, porém sozinho, ou com alguma amiga fumando o mesmo cigarro, bebendo a mesma bebida.”
     “Nada de diferente?”
     “Ah, sim, claro. Meus pensamentos seriam outros.”
     “Quais seriam?”
     Trago o cigarro novamente antes de responde-la, tomando a melhor decisão mentalmente. “Eu pensaria na minha próxima jogada, se blefaria, se arriscaria tudo, ou se deixasse passar e jogasse as cartas de volta para o deque.”
     “E você realmente acha que eu vou te beijar?”
     “Ainda está cedo para falarmos de beijos.
     “Sobre o que você quer falar então?”
     Eu bebo do uísque em meu copo e paro por algum momento, pensando no que seria de agradável para discutirmos depois de anos sem nos falarmos. “Por que você quis se afastar de mim?”
     “Ah, mas pra falar sobre beijo tá cedo.”
     “Ei, você perguntou. E além do mais, meio que me deve também.”
     “Como assim te devo?”
     “Porra, por favor. Você se lembra como foi embora?”
     “Sim.”
     “Não me parece.”
     “Aí já não é problema meu.”
     “Eu lembro de você me dando uma péssima desculpa. Eu perguntei se ainda poderíamos manter a amizade, e você, apesar de responder que sim, parecia que nunca queria conversar comigo ou saber de mim. Sempre fechava as conversas com frases típicas e propriamente feitas com esse único propósito.”
     “E você entendeu tudo direitinho.”
     “Não. Eu entendi foi porra nenhuma. O que fiz foi me conformar. Você foi embora, e eu lidei com sua despedida por um bom tempo.” Eu ergo o cigarro entre meus dedos.
     “Então você ter voltado a fumar é culpa minha?”
     “Eu não disse isso, mas foi uma das coisas que encontrei pra me esquentar nas noites que eu me pegava pensando em você.”
     “Uma das coisas?”
     “Sim, perfeitamente. As outras são tão clichés quanto. Um pouco de sexo sem afeto, doses de destilados, amor próprio sendo vomitado aos chãos de nossa cidade. A autoflagelação em busca de um senso comum e lógica sendo justificada como busca por criatividade. Essas coisas que as pessoas comuns dizem sobre gente talentosa artisticamente.”
     “E é assim que você se vê?”
     “Não. Eu sou cínico. Mas confesso que estava com saudades de você, de nossas conversas, de seus beijos em minha testa, em minha boca, e do seu quadril em cima de mim.”
     “Mas tá cedo pra falarmos de beijos.”
     “Em algum lugar do mundo já deve ser apropriado esse tipo de conversa,” eu dou um sorriso antes de beber novamente. “Você não vai pedir algo?”
     “Não. Eu estou bem.”
     “Tá bem mesmo? Não me parece.”
     “Sim, estou bem. Mas queria ficar melhor.”
     “Podemos ir para minha casa, se você quiser.”
     “Tudo bem.”
     “Vou só levar o copo para dentro antes, e ir ao banheiro rapidinho.”
     “Ok, sem pressa.”
     Nisso eu me levanto e volto para dentro do bar com o copo em mãos. Eu o ponho ao balcão e agradeço ao garçom. Me viro em direção ao banheiro e espero os jogadores de sinuca darem suas tacadas, mesmo depois deles insistirem que eu passasse antes. Gosto de vê-los jogarem, de ouvir os comentários repletos de autoconfiança a cada tacada bem sucedida. Dentro do banheiro encontro um rosto amigo lavando as mãos.
     “E aí, como tá?”
     “Me preparando pra ir embora.”
     “Poxa, mas já? Tá de sacanagem, né?”
     “Que nada. Amanhã acordo cedo.”
     “Amanhã é sábado, porra.”
     “E eu acordo cedo.”
     “Tu vai fazer o que sábado de manhã?”
     “Me masturbar vendo o jornal. Tem uma jornalista que sou apaixonado. É uma mulher deslumbrante, de olhos castanhos, cabelos pretos e queixo fino. Mas o que mais me deixa de pau duro é sua voz. Não sei explicar, mas eu sinto coisas incompreensíveis.”
     Ele sorri abobado. “Tá bom,” e dá um tapa em minhas costas. “Vai lá, cara. Tenha uma boa noite, e uma boa ereção amanhã de manhã.”
     “Obrigado,” eu digo antes que ele saia. Lavo minhas mãos e retorno à mesa.
     “Então, você está pronto?” ela me pergunta.
     “Sempre estou. Vamos.”
Cleber Junior
Enviado por Cleber Junior em 21/03/2020
Código do texto: T6893246
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