Memória afetiva
Eu havia organizado a reunião de acolhimento dos pais no início do ano letivo, mas não participara da elaboração das listas de participantes, visto que isso era atribuição da secretaria. Também não a vi de imediato, quando entrei na sala lotada e assumi meu lugar na mesa da coordenação pedagógica. Mas à medida em que olhava os rostos dos pais e mães presentes, enquanto a diretora fazia o discurso de boas-vindas, acabei por reparar na morena de cabelos cacheados que me olhava com atenção. O penteado estava diferente, mas só podia ser ela.
Enquanto a reunião transcorria, e depois, na parte em que os pais faziam perguntas sobre o ano letivo, fizemos contato visual algumas vezes. Ela também pareceu me reconhecer e sorriu, de forma divertida. Finalmente, o encontro acabou e os pais começaram a sair do recinto. Ela permaneceu sentada e aguardou, até que eu me aproximasse.
- Celma? - Indaguei.
- Olá, André - replicou ela, erguendo-se e me estendendo a mão num gesto formal. - Mundo pequeno, hein?
- Nem tão pequeno assim - avaliei, apertando a mão oferecida. - Afinal, faz quanto tempo... 10 anos?
- Dez anos - assentiu ela. - Me mudei para o bairro no mês passado, eu e a Júlia.
- Júlia é a sua filha? - Indaguei.
- Sim, ela foi matriculada na sua escola para este semestre.
Ficamos um momento em silêncio, olhando um para o outro, até que eu convidasse:
- Vamos tomar um café?
- Vamos - acedeu.
Levei-a até a minha sala na coordenação, onde normalmente eu tinha conversas reservadas com os pais. Bom, aquela iria ser uma conversa reservada, já que eu e Celma havíamos tido um rolo no passado, e eu estava curioso para saber o que ela andara fazendo depois que tínhamos nos separado.
- Então, essa é a Júlia - comentei, abrindo a ficha da aluna na tela do computador sobre a minha mesa. Uma menina morena sorridente, de longos cabelos cacheados.
- Essa é a Júlia - confirmou ela, enquanto eu lhe servia uma xícara de café.
- E o pai? - Indaguei, sem rodeios.
Celma riu.
- Não é você, calma! Ela está com 8 anos.
- Ufa - respondi, fingindo alívio. - Eu ficaria devastado se você tivesse vindo me dizer que havíamos tido uma filha... e que você a escondera de mim por todos estes anos.
- Parece enredo de novela mexicana - ironizou Celma. - Não, o pai da Júlia se chama Adalberto. Fomos casados por cinco anos, nos separamos ano passado. Foi aí que eu decidi mudar para cá e matriculei Júlia na sua escola; mera coincidência, é claro.
E colocando sobre o pires a xícara manchada de batom lilás:
- Mas gostei de ter te reencontrado.
- Talvez possamos marcar um jantar para comemorar esse nosso reencontro - sugeri.
- Você não casou? - Inquiriu ela, fazendo-se de desentendida.
- Morei junto uns dois anos. Não deu certo, separamos. Sem filhos.
- Engraçado... lembro que você queria ter filhos; eu é que não estava a fim de compromisso. Acho que foi meio por isso que acabamos.
- Verdade - confirmei. - Achei que você nunca iria se apegar a alguém... não a ponto de ter uma filha.
- A gente muda - reconheceu Celma, pensativa.
- Bom, embora não seja professor, eu vou ver bastante a Júlia por aqui - comentei. - Quem sabe, não marcamos um encontro a três... no shopping?
Celma me encarou, ainda pensativa.
- Acho que isso pode ser arranjado - admitiu, olhando para o relógio de pulso. - Agora, eu vou ter que ir.
Ergueu-se, e em vez de me estender a mão, virou o rosto para que eu a beijasse. Toquei suavemente com os lábios a face dela.
- O perfume ainda é o mesmo - relembrei, inspirando profundamente.
- Você tem boa memória afetiva - redarguiu ela, com um sorriso.
- [16-03-2020]