Esboços da Alma

Alcançar um estado de espírito mais elevado, a verdadeira sabedoria. O aprendizado se dá por meio dos sonhos. Um canal de comunicação com outra realidade, mais real que essa, e que lhe dá sentido e substância.

Imagens: as escadas de Jacó, por onde os anjos sobem e descem, levando e trazendo as notícias entre o céu e a terra. Metáfora ascensional. Os degraus representam obstáculos, que desafiam o caminhante a doar mais de si mesmo. Os cipós dos mortos. É possível subir por eles, até lá em cima, acima das nuvens. Os corpos tornam-se leves, flutuando. Então eles voam em direção ao céu etéreo, acima do céu atmosférico.

A brancura das nuvens remete à pureza. O azul do céu traz consigo a ideia de amplidão dos oceanos. Há uma ilha voadora, navegando pelas águas celestes.

Nela, a natureza floresce exuberante. A relva verdejante recobre o horizonte a perder de vista, com picos nevados de montanhas colossais. As árvores altaneiras se espalham por toda a área, onde habitam as formas mais variadas e peculiares de vida, animais, aves, insetos, seres de proporções microscópicas, invisíveis aos olhos humanos. Os peixes, e outros animais aquáticas, habitam despreocupados os lagos serenos e os rios caudalosos, que desaguam no céu...

As flores colorem de vida o cenário idílico, em que se vê, delicadas, as borboletas baterem suavemente o par de asas cerúleas com bordas negras. O espírito funde-se à paisagem, sentindo em comunhão com a floresta. Lá pairam entre as águas os espíritos guardiães. Eles são jardineiros, e cuidam carinhosos do local, secreto e sagrado. O som melífluo da harpa que se pode ouvir é como um bálsamo curativo sobre as feridas abertas da alma já cansada, a qual se esquece de si, do seu cansaço e das suas dores.

Andando pelos campos, após descansar sob a sombras dos galhos frondosos, e de refrescar-se nas águas límpidas do rio, próximo à cascata perpétua da cachoeira, o forasteiro dirige-se ao edifício suntuoso que lá existe. Por mãos de quem foram construídas, essa é a pergunta sem resposta.

Na verdade, é uma biblioteca, onde o saber incomensurável tem uma milionésima parte encerrada numa coleção de milhares e mais milhares de livros, em corredores labirínticos, os quais serpenteiam por vários níveis, nas duas direções, acima e abaixo.

O som do silêncio sobressai-se. O próprio espírito do silêncio faz ali a sua morada. E podemos nos sintonizar com ele, ao silenciarmos nós também o nosso coração. Cada livro que ali se encontra, na sua devida estante, na sua correta subseção, tem uma voz gravada nas letras de suas páginas. É a ancestralidade humana, a experiência de vida relatada pelos nossos mortos. Servem bem para o aconselhamento de quem se presta a ouvir. São muitos milhares de vozes em incontáveis volumes, alguns são calhamaços que se estendem em leituras arrastadas por meses e até anos, outros não são senão livretos que se leem em um só fôlego, numa tarde chuvosa de domingo. A imersão hipnótica da leitura nos enreda para dentro de suas páginas.

Quem quer que queira passar os restos insignificantes de sua existência minguada sob o teto daquelas dependências, para adquirir todo o conhecimento que lhe for possível, até que finde por completo o tempo que fora a ele destinado antes mesmo de sua concepção corpórea, terá que contar com a anuência dos espíritos bibliotecários, que tocam impecáveis a administração do espaço.

O teto alto do ambiente com pé direito duplo permite que se veja do segundo piso as estantes estenderem-se quilométricas. E próximo a elas as mesas cumpridas, compartimentadas em gabinetes individuais, equipados com abajures antigos, e cadeiras com as costas acolchoadas.

As janelas são como vitrais de catedrais medievais, mas despojadas das imagens que representam os episódios bíblicos aos fiéis analfabetos. A luminosidade inunda os enormes salões, banhando todo o espaço de claridade.

Os espíritos do jardim e do palácio trabalham em plena e íntima harmonia, cada qual com o lugar e as atribuições que lhe pertencem.

Conduzido pelos espíritos, o forasteiro chega finalmente ao andar mais elevado, após corredores e escadarias sem fim. Ao transpor a soleira da porta de madeira, o céu abobadado descortina-se ante à vista da alma ansiosa pelo saber. A varanda é perpassada em toda a sua amplitude pelas brisas amenas, que zunem aos ouvidos imateriais.

O anjo-mor estava esperando por ti. Detentor de um saber terrível, o qual oprime os mais fracos e ignorantes. A alma sente os ombros pesando, como se houvesse uma força da gravidade que faz as almas menores em esplendor se curvarem diante do ser angelical. Sente-se muito confortável nessa posição, de joelhos, com a testa encostando no mármore gelado. Queria beijar os pés do ser etéreo, na sua nova condição de discípulo. O Mestre não permitiu.

Todas as noites a alma empreenderia uma distante viagem, para que ali estando, o Mestre pudesse ensinar-lhe cada dia um pouquinho mais. O saber viria por influxo divino, límpido, sem entraves, como a correnteza de um rio, que desliza para baixo no leito inclinado. Ligeiro, aprazível, sem esforços.

A memória divina vai se fortalecendo e se ampliando, não sendo mais recoberta pelo esquecimento ao retomar o estado de vigília. O Mestre ia insuflando, insuflando saberes seminais no âmago da alma, num sopro só, constante. O corpo descansava, porém a alma não estava inconsciente, mas vigilante.

O espectro tétrico o qual o acompanhava de longa data, entrando já numa afinidade fraternal, acabrunhava-se cada vez mais. A alma olvidava-se continuamente da figura temerosa, à medida que se recordava vivamente da sapiência sápida da realidade última e divina.

A alma emana de si uma radiação benévola que altera fundamente o anjo anuviado. A correlação de forças sofre um desequilíbrio em favor da alma, pendendo agora para o lado de cá. Ela dita o rumo, enquanto que ao outro cabe somente obedecer.

Uma noite não era senão incontáveis eras, num espaço que não se podia encontrar em lugar algum, no qual a areia da ampulheta, fabricada para o tempo mensurar com precisão, não cai. A imensidão inefável da Eternidade condensada na partícula infinitesimal do grão de areia.

Luna Conti
Enviado por Luna Conti em 08/03/2020
Código do texto: T6882869
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.