Um anônimo triste e solitário na multidão festiva dos blocos de Carnaval II

Abelardo caminhava a passos largos pela Avenida ladeada de prédios. Os canteiros centrais repartiam o espaço para os veículos em três, sendo que a via central consistia num corredor exclusivo para o tráfego de ônibus, onde estava o trio elétrico, o único permitido naquela ocasião. Em cima dele, cercado por grades os quatro cantos, os artistas e animadores da folia não perdiam o pique em nenhum momento. Estavam a mil, elétricos, movidos apenas a água mineral, em temperatura ambiente, evitando assim estragarem o instrumento essencial que era a voz. O ânimo fervente deles vinha sabe-se lá de onde, contudo, era fundamental para manter fervilhante o alto astral do enxame, que zunia, apertava-se e acotovelava-se, transbordando pelas vias. A ninfa saltitante no trio, de mechas rubras e microfone na mão, cantarolava desafinada ritmos dançantes, corporais, repletos de carnalidade, requebrando os quadris, como funk, axé e pop, os hits que bombavam nas plataformas digitais, sem deixar de fora, entretanto, os sucessos de carnavais passados.

Uma agitação incomum formou-se rapidamente num ponto mais afastado, no qual se ouvia berros injuriosos e via-se pessoas correndo assustadas. Dois grupos de funkeiros estranharam-se por qualquer coisa, um olhar atravessado, um rosto mal-encarado, as emoções a flor da pele e o sangue pulsando de raiva. Talvez um tenha mexido com a mulher do outro, que não gostou de ver a namorada sendo cobiçada. Embaralharam-se uns nos outros, por volta de quatro a cinco jovens, com socos e pontapés desencontrados. Rapidamente o foco da confusão foi apartado pelo aparato policial.

Abelardo dobrou a esquina à direita, aproximando-se do estacionamento do supermercado. Aqui e ali, avolumavam-se pessoas cambaleantes, desaforadas, em grande estardalhaço, devido aos excessos de álcool. O espetáculo indigesto despertava em nosso rapaz certo sentimento de repulsa, repreensão moral até. Veio à memória as reprimendas enérgicas do tio pentecostal, o qual reprovava categoricamente o ar malsão daquela festa tão entranhada no ethos do povo brasileiro.

Uma golfada, mais outra, logo em seguida. Um homem débil e de postura acabrunhada, sozinho e de trajes surrados, quase vomitou um líquido amarronzado em duas meninas que passavam distraídas, ao que elas reagiram apavoradas com gritinhos de nojo. Resmungou sons desarticulados e vocábulos incompreensíveis, e com pantomimas indecentes e gestos indecorosos, o homem debilitado saiu aos tropeços, esbarrando nos transeuntes, os quais o repeliam asperamente, a ponto de ser esmurrado por alguém mais esquentadinho, e ficar todo estatelado na calçada, sem conseguir se levantar. No passeio do outro lado da rua, uma mulher estava de joelhos flexionados e costas levemente arqueadas em direção ao chão, paralisada, como se a imobilidade pudesse afugentar o mal-estar generalizado que se apossara dela, persistentemente. A amiga estava ao lado, de pé, socorrendo a moça enjoada. Segurava a sua mão direita e alisava a cabecinha dela, dizendo palavras de conforto num tom tranquilizante. A moça lânguida fazia intenção de regurgitar, mas não saia nada. Cuspia, e um fio de saliva ia dos lábios até a calçada de pedras portuguesas. Reparando naquilo tudo, eventualmente Abelardo sentia ânsias, mas conseguiu se conter.

O nosso protagonista anônimo lembrava-se desse supermercado dos tempos de criança, assim como o tio evangélico e as algazarras de spray de espuma. Para dizer a verdade, as ruas, as avenidas, os bairros, as construções, os parques, os shoppings e as lojas, enfim, absolutamente tudo que compunha uma cidade, remetia-lhe a isso ou aquilo, como um mapa afetivo de si mesmo, embora externo a ele, em termos corpóreos. Abelardo tinha o hábito esquisito de fazer longuíssimas e extenuantes caminhadas, sempre que estivesse com tempo livre. E os pés andejantes jornadeavam para dentro de si próprio, isso porque ele podia ser, em certas circunstâncias, altamente suscetível aos estímulos do ambiente, quando lhe fosse conveniente, tornando-se uma grande referência cruzada, associativo com memórias, palavras e gestos, que nem um poeta, ou as Madeleines de Proust, estilhaçando com violência as barreiras que separam presente e pretérito.

O estabelecimento comercial era antigamente um hipermercado, de dimensões amplíssimas. Mas com o decorrer dos anos, e o acirramento da concorrência, foi perdendo atratividade, sendo rebaixado ao prefixo super, e não mais hiper. Uma parte do espaço, esvaziado, fora locado a uma igreja pentecostal. Na entrada, observava-se um senhor de idade já avançada, de pele negra e de terno cinza, em evidente contraste entre epiderme e tecido sintético, acompanhado de dois adolescentes, ambos pardos, vestidos igualmente de camisa social, como se estivessem em trajes domingueiros, embora sábado ainda fosse. Tinham folhetos nas mãos, que tratavam didaticamente sobre a Boa Nova, e nos corações a vontade forte e entusiasmada de converter as almas desgarradas. De repente uma senhora e uma jovem aproximaram-se dos três, saindo de dentro da loja improvisada de templo do Senhor. Não pareciam em nada com as dezenas de pessoas do sexo feminino com quem Abelardo esbarrara nos blocos, a maioria de shorts jeans bem curtinhos, e regatas coladas e amplamente decotadas. Os fios longos em caracóis, na altura da cintura, quase, e as saias até os joelhos, destacavam-se daquelas figuras feminis, sóbrias e recatadas. Um outro Brasil nascia, robusto o suficiente para desafiar seriamente os alicerces, solidificados pelos séculos, da Igreja Católica Apostólica Romana, fazendo ruir a hegemonia do catolicismo desde as bases...

O estacionamento era descoberto, e em outros tempos, não haviam cercas, de tal modo que os mendigos, fedorentos, em andrajos, aproveitavam da oportunidade para adquirirem os seus carrinhos de compras, gratuitamente. Os mais asseados – as honrosas exceções – utilizavam-no para acondicionarem os seus parcos pertences, como cobertores e agasalhos (para as noites gélidas de inverno). Os de caráter mais zombeteiro brincavam alegremente de corrida com os carrinhos, de modo que um ajeitava-se em seu interior, e o outro empurrava, com toda a força disponível. Nos portões apertados de entrada e saída, uma baliza, tipo fradinho, nas cores preta e amarela, fora plantada e bem fincada no concreto, como obstáculo que impede a livre circulação dos carrinhos, evitando as perdas onerosas.

Abelardo adentrou rapidamente ao supermercado, e por levar apenas três latas geladas de cerveja, não saiu insatisfeito, virando-se com o que sobrara. O feriado carnavalesco passou que nem um furacão, levando tudo e deixando só os destroços. Mesmo com o país em crise, o consumo estava sendo voraz, batendo o recorde em vendas dos últimos anos. Os funcionários estavam cabisbaixos, e meio apáticos, de terem que passar a data comemorativa trabalhando. Na fila do caixa rápido, Abelardo não pode deixar de ouvir a conversa do grupo mais a frente, composto de dois casais de amigos, ao que parecia. Uma delas estava longe, no smartphone, talvez respondendo alguém no WhatsApp, ou quem sabe curtindo a foto de outro alguém no Instagram. A outra, fantasiada de Arlequina, deslumbrante, com um bastão de beisebol e meia-calça, e provavelmente uma peruca na cabeça, com dois rabos de cavalo, o da direita com as pontas em rosa-choque, já o da esquerda, pintado em azul. Uma discussão amigável, porém acalorada, transcorria:

– Você tem que entender que “Não é não! ”. Pô cara, é tão simples – observou a heroína às avessas, tentando ser meiga, mas sem dispensar o ar pedagógico.

– É, mas o não pode ser um charminho também, né? – retrucou em dúvida um dos rapazes, de óculos escuros e boné para trás.

– Ih, às vezes rola isso daí mesmo, Ju, ou vai dizer que nunca aconteceu com você? – indagou desafiante o outro rapaz, de músculos mais proeminentes que o parceiro de birita.

Até Abelardo, que participava apenas como ouvinte distante, julgou sensato.

– Ai, meu Deus – disse com cara de tédio e voz arrastada –, eu não acredito que estou ouvindo isso. Os cara chega na maior truculência, achando que já pode ir pegando, nem pedem permissão – desabafou Arlequina, irredutível, meio cansada da relutância dos homens.

– Ah, mano! – queixou-se contrariado o de músculos inflados, visivelmente o que tinha preeminência sobre os demais ali, em carisma e sedução social – Aí também já é um pouquinho demais, né? Às vezes a gente nem sabe o que dizer. Chega na atitude, com ousadia mesmo. É um ótimo quebra-gelo, as mina tudo gosta, porque flui melhor...

– Nãaao, Rafael! – interrompeu a moça de lábios escarlates e semblante níveo, com um coraçãozinho escuro logo abaixo do olho esquerdo, que nem uma lágrima. – Não é por aí, meu! Você é muito ogro! Vai acabar sendo preso qualquer dia desses...

Ambos os rapazes deram risadas. Abelardo já não sabia mais que conclusão tirar daquilo tudo, confuso que estava. A vez do grupo de amigos serem atendidos chegou, e a conversa interrompeu-se. Logo após, foi a vez de Abel. Antes de sair, contudo, foi ao banheiro limpar a tampa das latas na pia – conselho da mãe, que o alertava do perigo de colocar a boca direto nas latinhas, sem as lavar primeiro.

Voltando ao estacionamento, mirou o céu acima, e a paleta de cores quentes desdobrava-se à vista no horizonte crepuscular. As nuvens rarefeitas no vasto painel celeste eram entremeadas com toques de violeta, alaranjado e rosáceo. A luz natural do Astro-Rei ia caindo aos pouquinhos, esmaecendo; em contrapartida, os postes tinham a luz artificial acesas, as quais ofuscavam, juntamente com as luzes dos prédios, nos centros urbanos, o lume tênue das estrelas, singelas e imemoriais, pois percorrem espaços incomensuráveis para chegar até nós, terráqueos. O sereno da noite, que já se formava na atmosfera, ocasionava o aprazível resfriamento noturno, e a brisa sossegada vinha de banda, acertando em cheio Abelardo nos passos pensativos, alheio de si, sob a Lua Nova. (Continua...)

Luna Conti
Enviado por Luna Conti em 02/03/2020
Reeditado em 19/03/2020
Código do texto: T6878508
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