Um anônimo triste e solitário na multidão festiva dos blocos de Carnaval I
Num sábado ensolarado de carnaval, numa cidade de médio porte qualquer, sem forte tradição de folia, o bloco festivo entupia as ruas pelo qual passava, deixando um rastro de divertimento desordeiro, desaguando por sua vez, na avenida principal, onde o trânsito regular de veículos havia sido excepcionalmente interditado para o feriado mais desejado e aguardado do ano.
O cortejo carnavalesco seguia o rumo previamente traçado em sua caminhada, cabendo aos homens de farda o policiamento ostensivo, vestidos com armaduras à prova de balas, montados em motocicletas velozes, ou fazendo a ronda a pé ou de carro. De cima vinha o barulho ensurdecedor das hélices giratórias, as quais competiam com o trio elétrico. Os foliões, e principalmente os mirins, avistavam impressionadas o evento incomum. No íntimo, o sentimento de proteção fortalecido. Até a cavalaria era mobilizada, ornando o desfile marcial aos olhos dos curiosos.
Tamanho aparato de segurança pública não inibia os pés de chinelo que, tais quais os ambulantes, viam na data alegre um meio legítimo de arrecadar polpudos lucros, com substâncias ilícitas, de péssima qualidade, provenientes das fronteiras com os nossos *hermanos* sul-americanos. A demanda era grande, e toda forma potente de entorpecimento do espírito encontraria escoamento adequado.
Outra modalidade de malandragem que entra em alta nessa época do ano é a de "batedor de carteiras" - sem a glamourização dos charmosos gatunos das películas hollywoodianas - ; só que nesse caso, o alvo passa a ser os modernos smartphones. Os mais sagazes, agindo sempre em bandos, colecionam ao fim de um duro "dia de trabalho", literalmente, dezenas de aparelhos, a maior parte velhos e com a tela trincada.
Apenas não contavam com o fato de que, vivendo numa sociedade cada vez mais baseada na tecnologia da informação, o monitoramento eletrônico seria uma opção natural ao combate à criminalidade. É que os "noiados" não assistiam aos telejornais, e por isso, não estavam bem informados quando o assunto era atualidades. Boa parte deles "rodou", terminando o dia na delegacia.
Em meio à multidão, um anônimo observava de perto a muvuca aglomerada ao seu redor. Saíra do apartamento, por sensação de claustrofobia, digamos assim. As paredes brancas dos cômodos pareciam estar se comprimindo contra ele, como se quisessem dar um fim no rapaz por sufocamento. Foi o som jocoso das marchinhas do bloco, expansivo e jovial, que arrastou Abelardo para a rua. Geralmente se sentia incomodado pela algazarra, mas dessa vez foi como que uma corda de salvação jogado ao mar.
Como diria aquela música do Cidade Negra "Embarca com suas dores, para longe do seu lugar... O bloco vai te levar...". Estava apenas com uma camisa preta, com estampa descascada pelo uso contínuo ao longo do tempo, e uma bermuda cor de cáqui. A coloração escura ajudava a disfarçar a pança avantajada do jovem, o qual, contudo, era magro. A armação ampla e oval dos óculos ajustavam-se harmoniosamente com o rosto de formato quadrado.
A sua estratégia para evitar o contato visual consistia em estar sempre circulando, mas a passos não muito rápidos, para ir aclimatando-se aos poucos no ambiente. Após algum tempo, estacou. Sentou-se na escadaria da catedral católica que havia ali. Observava mecanicamente o fluxo lá embaixo, num canto sem gente por perto. Ponderou o que estava fazendo ali, e qual seria o seu próximo passo. O corpo quente e molhado ia refrescando-se um pouquinho com a brisa suave que resolveu aparecer de repente. A fragrância do perfume floral evaporara-se por completo da pele amorenada. Com a barra da camisa enxugava a testa, de onde gotas salgadas rolavam. Deu uma olhadela na carteira, mas com discrição, por medo de ser roubado. Tinha alguns trocados, o suficiente para comprar duas ou três latas de cerveja gelada. Resolveu driblar os vendedores, de higiene duvidosa, munidos com as suas caixas de isopor. Havia um supermercado perto dali que se encontrava aberto naquele momento, local em que o seu dinheiro renderia mais.
Abelardo retomou os passos, agora com rumo certo. No decorrer do caminho, esbarrava com fiscais da farra, devidamente uniformizadas. O clima de oba-oba estava sob outro tipo de vigilância, diversa daquela representada pela corporação policial. Costumes já desusados eram o alvo da repressão. A moça de cabeleira crespa e volumosa, tingida de rosa-choque, entregou a ele, com simpatia fria e mecânica, um panfleto de conscientização. Não se desviou dela. Ato contínuo, seguiu em frente.
Diante de si, muitos grupos compostos por mulheres extrovertidas e casais masculinos. Outros exclusivamente por homens ou mulheres. Alguns homens com roupas femininas, mas não eram motivados pelo ritual de inversão mais conhecido como carnaval, e sim pelo desejo de mostrarem-se ao mundo como percebem a si mesmos, subjetivamente.
Todas as tribos do vasto espectro LBTQIA+ estavam apropriadamente representadas, destacando-se acima de tudo um feitio singularmente andrógino, sem distinções traçadas em negrito, mas esmaecidas e fluídas, que vazam umas nas outras, em experimentalismos incessantes. A Parada Gay estava presente naquela festa, reconfigurando a sua liberalização sexual com tons políticos, na intenção deliberada de provocar rupturas profundas no tecido social. Roberto Damatta precisaria reestudar o Carnaval do século XXI...
Quando Abelardo acompanhou vidrado o andar insinuante, de uma feminilidade exacerbada e atípica, juntamente com outros homens no cio próximos a ele, sentiu um misto de tesão e estranhamento. Ela virou-se de súbito para Abelardo, e deu uma piscadela de um jeito sacana, o que o desconcertou. Não se deteve a continuar.
Vez ou outra, reparava em fantasias mais elaboradas. Algumas, politicamente incorretas. Concluiu que o patrulhamento contra o cocar indígena limitara-se ao ambiente virtual do Twitter, com suas típicas twittadas de teor beligerante.
Avistou pelo menos umas três diabinhas chifrudas, empoderadas com tridentes; talvez umas duas piratas, sendo que uma delas estava de tapa-olho, porém menos sorridente que a outra, pobremente caracterizada, todavia esfuziante; uma Pocahontas num grupo de marmanjos peludos travestidos de mulher; uma Minnie abraçada pelos braços carinhosos de uma Melindrosa; além de inúmeras regatas de abadás de micaretas e carnavais fora de época, tanto em homens quanto mulheres; outra parte de pessoas com pequenos adereços aqui e ali, mas que não caracterizavam uma fantasia identificável; e outra parcela, essa de "sacudos", com uniformes de times de futebol.
No bloco havia certas nuances. Uma delas tinha o caráter mais ingênuo de meninas e meninos, aqueles adultos em miniatura, que corriam despreocupados de um lado para o outro, naquele tumulto divertido que mais se assemelhava a um recreio estendido pela tarde inteira. As mães, com razão, não desgrudavam as crianças da vista, nem sequer por um minuto. Um casal de irmãos juntou-se para perseguir, de forma travessa, o amiguinho de ambos, com latas de spray de onde esvoaçavam pequeninos flocos de neve. A vítima da estripulia voltou-se para a mãe, recoberto de espuma branca e fofinha, pedindo, com grande agitação, que ela o acudisse com mais dinheiro, para que ele pudesse comprar uma nova embalagem, já que a última fora totalmente gasta. Ela não rejeitou o pedido, mas ralhou com as crianças que não mirassem nos olhos, caso contrário a brincadeira estaria terminada, e todos voltariam para casa com a bunda doendo de tanto levar palmadas. E que faria isso ali mesmo, na frente dos outros, porque não tinha medo de vexame. As crianças prometeram que tomariam cuidado, e selaram o acordo beijando os dedinhos em sinal de cruz. A cena trouxe a Abelardo uma série de imagens afetivas da infância, doces e suaves. (Continua...)