Em uma tarde qualquer.

A nuvem vagava pelo céu lentamente. Silenciosamente. Preguiçosamente, como seu gato a ronronar baixinho ao seu lado. Os olhos observando o caminhar das nuvens. O ouvido captando o som de seu gato, do vento, dos passarinhos e das crianças ao seu redor. Abriu e fechou a mão que tocava a grama morna e lhe fazia sentir mais presente naquele momento. Desviou o olhar das nuvens e observou as duas crianças que brincavam alegremente na sua frente. Seu filhos. Clarissa e Augusto. A alegria era quase completa, mas faltava ela. As crianças sabiam quem era ela. Sua mente também sabia e nesses dois meses de luto poucas vezes ele pode descansar de sua lembrança. As vezes em sonho ela vinha lhe visitar. Às vezes apenas o toque amargo do café em seus lábios lhe produziam lembranças quase tão amargas quanto o governa que ela não cansava de criticar. Ele sabia que não poderia evitar. A vida era, afinal, isso. O resumo de suas histórias lhe passavam constantemente por seus pensamentos. Mas nada disso era importante agora, exatamente. Pois ele via o sorriso leve nos lábios de seus filhos. Um sorriso que ele não via há meses. Que havia quase sido sepultado junto com ela. Pois bem, aquela tarde de verão ficaria em sua memória. Igual o carro comprado em 2016. O nascimento de seus filhos. O impacto das leituras de autores que lhe revelavam a grandeza da angústia humana e lhe ajudavam nesse momento. O almoço nos domingos na casa de seus Pais. A tarde abraçada com ela. O carinho sentido por ela. O primeiro beijo com ela. E ela… Assim, novamente, sua mente entrava em um loop quase infinito onde ele vagava internamente, como se cada lembrança reproduzida fosse uma possibilidade de realmente lhe ter novamente entre eles.

- Papai, venha brincar conosco - Interrompeu Clarissa assim seus pensamentos. A jovem e inteligente Clarissa. Com apenas 6 anos teve que lidar com o falecimento de sua mãe. Na primeira noite não entendeu bem, mas chorou mesmo assim. Na segunda começou a sentir sua falta. Na terceira se encontrava mais triste e abatida. Na quarta a pobre menina, silenciosamente, deitou no lado da cama em que sua mãe costumeiramente deitava e ficou olhando para suas coisas no armário, nas gavetas e no chão. Colocava lentamente a foto de sua mãe encostada no peito. Ficava em profundo silêncio, as vezes chorando, às vezes imaginando onde a pobre mamãe poderia estar naquele momento. E assim dormia. E assim dormiu praticamente durante esses dois meses que se seguiu. Mas Clarissa era forte para uma criança de 6 anos. O pouco que a vida lhe ensinou lhe foi suficiente para encarar a situação com toda a maturidade esperada de uma criança de 6 anos. Às vezes tentava se distrair com Augusto, que possuía 10 anos. Muitas vezes via seus filmes preferidos, que lhe pareciam deixar suspensa no ar e absorta e longe de todo o sofrimento. O tempo passou, e hoje ele era capaz de ver o sorriso de Clarissa surgir plenamente. Alegremente. E pode ele sentir toda a pureza de uma alma em construção naquelas simples palavras que acabara de proferir.

- Sim, Papai, venha. E não esqueça de trazer a garrafa d’água.- Dissera, em sequência, Augusto. Augusto sabia que para sua irmã ele era agora uma válvula de escape. Era aquele que ela buscava, as vezes, dormir na mesma cama quando uma noite estava sendo mais difícil que as outras. E Augusto sofria, as lembranças que ele tinha de sua mãe eram mais vivas que de sua irmã, e o pobre garoto não sabia muito bem lidar com o luto ainda. Lembranças do sorriso de sua mãe. Da alegria de deitar em seu colo e sentir seus dedos perdidos por entre seus cabelos. e, principalmente, quando sua mãe saia para os protestos contra o governo, injustiças sociais e busca pela representatividade negra e ele ficava admirado e quase a via como uma super heroína, como todas as outras que sua mãe sempre lhe ensinou a admirar e respeitar. Angela Davis, Elza Soares etc, e aquela moça que sua mãe vivia lendo e relendo os livros, Virginia Woolf. Se admirava com Greta que aparecia tanto na televisão e era tão forte como, talvez, sua mãe. Augusto gostaria de ser como sua mãe um dia. Entender melhor tudo que ela lutava. Porque ela sempre lhe dizia que buscava um mundo melhor e mais justo para seus filhos.Isso era felicidade. A bondade que se via nos olhos de sua mãe ele também sentia em seu peito. Augusto queria ser aquilo que sua mãe sempre fortemente se denominou, feminista, mas ele ainda não entendia direito o significado. Mas sabia, em seu íntimo, que essa palavra representava tudo aquilo que ele gostava em uma pessoa.

Clarissa amava sua Mãe tanto quanto seu Pai, assim também sentia Augusto. E a reconfiguração da família lhe faziam sentir, mais do que nunca, a necessidade de união entre os três. Isso ele sabia. E sorriu, com uma alegria comovente. Quando levantou lentamente por baixo daquele céu onde as nuvens vagavam lentamente. Com cuidado para não acordar seu gato que adormecia ao seu lado. Se agachou para pegar a garrafa de água que lhe foi pedido. E foi correndo em direção de seus filhos brincar como uma criança que ele se permitia ser.

- Já vou!

Vinicius Marques
Enviado por Vinicius Marques em 10/02/2020
Código do texto: T6862836
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.