1
- Hei! Acorde, amiga, e saia logo dessa cama, pois não podemos perder tempo. Lembre-se que temos apenas quatro dias de descanso.
- Ah, por favor, me deixe dormir um pouquinho, afinal, dormir é descansar.
- Dormir mais? De jeito nenhum! O dia começou já faz muito tempo. Já fui lá no curral buscar leite e ajudei minha mãe a preparar o café. Já fizemos até pão de queijo. São Sete horas da manhã, o sol já está alto. Lembre-se que estamos no verão.
- Preciso tomar um banho. Onde carrego meu celular?
- Nada de celular! Esqueça o celular, desconecte-se. E nada de banho. Aqui na roça a gente toma banho só à tarde. Vamos suar bastante durante o dia andando a cavalo, ajudando meu irmão a lidar com o gado, tratando dos porcos e das galinhas.
- Seu irmão já está trabalhando?
- Há muito tempo! E ele está louco para te conhecer. Venha logo.
Quando saí no terreiro, tive a sensação de estar perdida ali, naquele fim de mundo. E isso aumentou quando vi que estava no alto de uma montanha rodeada por outras mais baixas e vales profundos. A boa notícia é que, se de fato estava perdida, ao menos me encontrava perdida em um lugar maravilhoso. Cada foto que tirava, parecia estar pronta para ser colocada em uma moldura. Experimentei um ar puro invadindo minhas narinas. Depois dei uma volta ao redor da casa. Vi que era muito bem construída e muito agradável também. Maria Eduarda me mostrou o detalhe dos tons variados de verde ocupando a imensidão. Ouvi pássaros cantando, gado berrando, um misto de sons que se alternavam.  Ao longe vi pequenos fios d’água que se despencavam em meio aos rochedos formando lindas cachoeiras, cada uma com um nome característico que a Maria Eduarda sabia de cor. Adorei!
- Meninas, venham tomar café com a gente, uai – chamou dona Tereza.
Como estava faminta, não perdi tempo. Sentei-me diante de uma mesa farta e variada que parecia estar preparada para alimentar umas vinte pessoas.
- Maria Eduarda, vá chamar o Fernando, ele deve estar com fome.
De repente vi o Fernando estático na porta, com os braços apoiando seu corpo nos portais. Olhei-o de maneira discreta, o suficiente para ver que era muito bonito.
- Fernando, esta é minha amiga Carla  - disse Maria Eduarda.
- Olá, muito prazer! Seja bem-vinda! A Maria Clara fala muito de você.
- Prazer em conhecê-lo também! Sua irmã  já me passou sua ficha completa.
- E então, já tinha vindo por estas bandas?
- Não. É a primeira vez que venho ao interior.  Minha família é paulistana e nossos passeios até hoje se resumiram no trajeto da cidade para a praia, da praia para a cidade. Nunca cheguei perto de uma vaca, nunca montei em um cavalo, acho que vou pagar muito mico durante estes dias.
- Não se preocupe, minha filha - disse dona Tereza - fique tranquila! A Maria Eduarda e o Fernando vão caminhar com você por aí e te ensinar muita coisa. Vai sair daqui pronta para comprar umas terras e criar muitos animais.
- Acho difícil, dona Tereza. Viverei para sempre cercada por arranha-céus.
- Bem, agora chega de papo e vamos sair de dentro desta casa, - disse Maria Eduarda - venha! Vou te emprestar um par de botas, um chapéu e uma calça jeans. Vai se transformar em uma cowgirl agorinha mesmo. Depois vamos sair para tratar das galinhas, dos porcos e dos cavalos.
 
2
De tardezinha, após tomar um bom banho, deitei-me em uma das redes penduradas na varanda. Estava exausta. A noite começava a cair. Fazia silêncio ao ponto de pensar que estava sozinha naquela casa enorme. De repente vi uma alma viva se aproximando. Era o Fernando. Por instantes concluí que realmente estava sozinha e desamparada, talvez, ou quem sabe, frágil demais diante daquele homem que parecia se agigantar sempre que estava à minha frente.
- E aí, Carla, como está?
- Não poderia ser de outra forma. Exausta fisicamente, mas com a alma lavada com um gostoso descanso mental que este local tem me proporcionado. Estava carente disso. Mas onde estão as outras mulheres desta casa?
- Devem estar por aí cuidando de alguma coisa. Logo elas aparecem. E, então, o que aprontaram durante o dia?
- Bem, como disse de manhã, cumpri minha previsão e paguei muitos micos. Tive medo até das galinhas, imagina quando vi uma vaca na minha frente. Comecei a correr e gritar de tanto medo. Sua irmã era só risos. Pela tarde fomos à cachoeira.
- É, realmente deve ter sido engraçado! Pelo jeito eu perdi as cenas.
De repente ficamos quietos. Aquele silêncio me perturbava, me deixava insegura, mas decidi retomar as rédeas da conversa:
- Pelo jeito, você gosta do que faz.
- É, não vou mentir para você. Gosto muito daqui e sou muito feliz com o que faço! No início foi muito difícil, mas depois que cursei zootecnia e fiz alguns cursos sobre a fabricação de queijos, as coisas melhoraram muito para nós. Hoje temos um selo de qualidade e podemos vender toda a nossa produção para o Brasil inteiro sem a dependência dos atravessadores, o que nos dá uma boa condição. Aqui é bom demais da conta, nos sentimos donos do mundo. Está certo que nosso trabalho é cansativo e muito cativo, mas damos as nossas escapadas e de vez em quando vamos tomar banho de cachoeira, cavalgar por estas montanhas afora ou sair desembestado por aí em cima de uma moto.
Novamente o silêncio, mas desta vez o Fernando interrompeu a pausa:
- Já falei muito de mim, agora quero ouvir sobre sua vida.
- Eu? Pobre de mim! Minha vida em São Paulo é o oposto da sua. Levanto todos os dias às seis da manhã e só chego  em casa à noite. Trabalho em um grande hospital e lidamos com situações estressantes o dia todo. Além disso, sofremos todas as outras dificuldades da cidade, que por sinal todo mundo já sabe como é. E tudo sem direito às escapadas. A sua irmã que o diga, como dizem por aí, é a nossa lida. E por falar nela, está demorando.
- Vou ver se descubro onde estão. Mas, antes, gostaria de te fazer uma proposta. Quer que te ensine a andar a cavalo? É muito fácil e você vai adorar. Prometo que serei educado, cuidadoso e respeitoso.
- Ah! Bem que gostaria, mas não sei se devo. Vou ver com sua mãe. Se ela me garantir que procederá do jeito que me prometeu, talvez eu tope.
3
- Para quem estava com tanto medo de montar, está indo muito bem! 
-  Também pudera! Hoje completaram dois dias em cima do pobre animal.
- Que tal subirmos até aquela montanha mais alta?  É um lugar muito especial. Estava uma noite de clima agradável, de um céu pontilhado de estrelas. Ao chegarmos ao topo da montanha, senti-me mais perto de Deus. Olhei ao redor e vi ao longe luzes piscando aqui e ali. Eram de diversas cidades próximas, me explicou o Fernando. Apeamos e nos assentamos na relva ainda enxuta. Meu Deus! Já estava fascinada com aquele pedaço de mundo, agora estando ali naquele momento, fui a nocaute. Que lugar lindo! Deitamo-nos na grama e parecia que estávamos entrando no céu.
- Por que as estrelas estão piscando desse jeito?
- É sinal de que as chuvas estão se aproximando, uai!
- Pelo jeito vocês mineiros sabem de muita coisa por aqui. Sabem se vai chover ou fazer sol, que dia a vaca vai criar, quando a galinha vai tirar os pintinhos...
- O contato direto e constante com a natureza faz com que a gente aprenda muita coisa. Quanto mais o tempo passa, mais nos sentimos como parte dela. Quanto mais convivemos, mais nos conhecemos. Há uma cumplicidade entre nós.
- Tenho até medo de estar sabendo o que se passa no meu coração.
- Sei sim. Está apaixonada por este lugar... e por mim também...
- Olha só. Estou te falando, quase acertou...   
- Quase? Acertei sim! Tenho observado suas ações e reações.
4
- Realmente este lugar mexeu muito comigo. Estes quatro dias que estive aqui passou muito depressa, mas ao mesmo tempo tão devagar. O fato de estarmos mais próximos da natureza me deixou a sensação de que na capital é muito diferente, as horas voam e você vive sempre correndo atrás do tempo. Vou te confessar uma coisa: se pudesse, não voltaria para São Paulo. Por mim ficaria aqui para sempre. Passar esses dias aqui na fazenda de vocês me fez abrir a mente. Entrei numa fase de questionamentos e, para ser sincera, estou num conflito terrível.
- Por acaso estou incluído nesse conflito?
- Acho que sim. Também acho que pode ser passageiro, tipo coisa de verão. Você me ensinou que, nesta estação, a vida nasce, cresce e multiplica. Mas depois vêm outras estações onde as folhas caem e há a necessidade de um renascimento. Tenho medo de que esse sentimento que insiste em brotar entre nós seja apenas um ciclo que está acabando.
- Mas olhe, também pode ser duradouro e forte como esse pé de aroeira. Ele sofre com os ventos fortes e com as queimadas, mas está aqui há décadas.
- Ou como aquela florzinha ali que, dentro de alguns dias, estará murcha e morta?
- É! Pelo jeito já aprendeu mais do que imaginava.
Fez-se um silêncio entre nós.
- Quando nos veremos novamente?
- Talvez na semana santa, se eu e sua irmã não estivermos de plantão. Mas a semana santa está tão longe...
- É, mas para você chegará logo, pois vive na cidade grande onde as pessoas nem notam que o tempo passou. Eu é que estou perdido aqui neste mundão de Deus onde o amanhã sempre parece ser ainda hoje.
- Por que demoraria?
- Porque, quando bater a porteira e for embora por aquela estrada, ficarei louco para te ver novamente.
- Ah! Já entendi. É isso que fala para todas as garotas da serra da canastra?
- Mas que diacho! Pois é a pura verdade e me agarro na sua dúvida. Seu conflito pode resultar em um sim ou em um não. Aposto no sim. E mineiro é de muita fé!
- Pode fazer sentido.
- Posso aproveitar este momento e te pedir algo ?
- Pedir algo você pode, mas não sei se poderei atendê-lo.
- Quero um beijo bem demorado, como prova de que faço parte de suas inquietações.
Fiquei trêmula diante daqueles olhos verdes, não resisti e nos beijamos demoradamente.  Quando descemos a montanha e chegamos em casa, sai correndo e entrei no quarto, abracei minha possível cunhada e me derramei em lágrimas, por saber que seria meu último dia. Vivi um misto de emoções: alegria e tristeza, amor e ódio, me sentindo mais perdida do que quando ali cheguei...
Samuel araujo
Enviado por Samuel araujo em 07/02/2020
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