CAMILA (CONTOS MUSICAIS)
Malditas redes sociais! Já deveria ter aprendido com o falecido Orkut que pouca coisa boa vêm delas. Mas como resistir a tentação de ter contato com os antigos amigos, saber como eles estão? No entanto elas, sempre elas, acabavam o encontrando. Ele, um servo da saudade, não conseguia resistir ao desejo de ressuscitar os sentimentos e momentos passados. Mesmo tendo a plena consciência que se arrependeria. Hoje a cabeça doía com a lembrança do notebook que a mulher quebrou ao saber que andava conversando com uma ex-amante. Porém, com tudo que havia em jogo, continuava a seguir seus antigos relacionamentos, em busca de algo que não conseguia identificar. Agora aquilo era uma sacanagem de proporções cósmicas! A Camila! A Camila, o encontrou no Facebook. Como poderia lhe negar o pedido de amizade? Como não perguntar como está e depois ficar 6 horas no bate-papo? As memórias da sua adolescência, invadiam sua consciência como um tsunami. O livro sobre gestão de pessoal voltou para estante, junto com o Doutor Jivago que a tanto tempo queria reler. Atrás do busto de Goethe tirou sua paranga que não mexia há mais de 1 ano. Ainda bem que estava bem embalada, senão teria mofado. Enrolou um baseado caprichado e o fumou inteiro, de uma só vez, na varanda. Já sem andar direito tomou três clonazepans e abriu uma garrafa de vinho. Se a esposa resolvesse voltar antes da casa da mãe, estava fudido e mal pago! Deitou no sofá, escolheu uma playlist só de rock brasileiro dos anos 80 e colocou para tocar no aleatório em seu celular, assim como já colocara a sua consciência:
🎼Meia noite, noite inteira
3, 4, 5 da manhã
Eu vou me embora, mas eu sempre volto atrás
Porque as noites são todas iguais.🎵🎶
Como suportou aquilo durante tantos anos? Desde os quatorze anos saíra toda noite de sábado e domingo, sem quase nunca "catar" ninguém. Constantemente se sentindo humilhado, incapaz. A cada fim de semana prometia que no outro iria ficar em casa. Mas lá estava ele de novo. Embalado no canto de sereia que desta vez seria diferente.
Morava a dez quilômetros da cidade, sendo o último ônibus ás 10:30 e o primeiro ás 05:00. Nos domingos tinha que pegar o primeiro, aos sábados o deixava passar. Não foram poucas as vezes que o desconsolo o fizera voltar os dez km até a sua casa a pé no meio da madrugada. Não conseguia compreender hoje aquela obsessão. No Salão, a discoteca da cidade, com sua congada eletrônica, não aprendia a dançar por mais que tentasse. Era motivo de troça tanto das meninas quanto dos seus amigos. Não eram raras as vezes que tentava afogar suas mágoas no álcool. Até o que percebeu que não adiantava, elas haviam aprendido a nadar. Normalmente nas atividades do dia a dia e na escola era bastante comunicativo. Mas nestas noites era atacado de um mutismo aterrador, muitas vezes substituído pela inconveniência alcoólica. Nestes estados às vezes acabava saindo com alguém, aproveitando os poderes cosméticos da intoxicação etílica. As meninas conseguiam ser tão barangas que era zoado pela turma, ás vezes por meses.
🎉Depois da última noite de festa
Chorando e esperando
Amanhecer, amanhecer🎵🎶
O grito de basta chegou ao não conseguir ninguém em uma festa onde praticamente todo mundo estava bêbado. Jurou aos céus que não sairia mais nas noites de fim de semana. Se era seu destino não ser comedor ou respeitado (o que digamos, na adolescência, na sua pequena cidade natal, era a mesma coisa) , que fosse! Foi difícil no primeiro sábado e domingo, no segundo e até no terceiro. Depois passou. Começou a estudar seriamente para o vestibular, a voltar a ler de forma compulsiva, como antes da adolescência. Descobriu os autores russos. Estudava o colegial normal de manhã e o técnico de química à noite. Muitas tardes ficava horas nadando sozinho em uma represa que ficava entre sua casa e a cidade. Nas manhãs de fim de semana, saia de madrugada de bicicleta até o final da estrada que ia para o seu bairro. Em um determinado momento ficava no alto de um morro onde, naquele horário no inverno, só se via a ponta dos outros morros despontando como ilhas em um mar de névoa. Sentava ali até a neblina se dissipar, fumando um ou dois cigarros lentamente e deixando a alma passear. Foi numa dessas manhãs que a conheceu. Parou na porta de uma chácara para pedir um copo de água e quem veio atender foi a moça mais bonita que já tinha visto na vida. Um metro e setenta de um corpo esguio e de curvas perfeitas. Pele branca com algumas sardas, adornadas por olhos e cabelos castanho-claro. Era sensual demais para ser descrita como um anjo, mas era uma visão divina.
🎼Quando um certo alguém
Desperta o sentimento
É melhor não resistir
E se entregar.🎵🎶
Tamanha era a beleza e a gentileza da moça, que passado o encantamento inicial, começou a agir com uma naturalidade que nunca tivera com o sexo oposto. Era tão linda que toda esperança de algo mais era impensável. Nova na cidade, não conhecia ninguém. Iria estudar a noite e, apesar de estar com 16 anos, ainda estava na sétima série. Ao saber o que ele fazia tão longe tão cedo, ficou maravilhada e o fez prometer que voltaria no outro dia para que ela contemplasse também. Foi o que fizeram e este foi um dos momentos mais mágicos da sua vida. Era o mês de julho então passavam muitas tardes juntos. Era muito estranho que ela ficasse naquela chácara tão longe sozinha. Um dia a levou na represa em um raro dia de calor. Após uma tarde inteira nadando, lhe confessou que tinha sido mandada para lá pelo ciúme que a mãe tinha do padrasto. Não sabia o que dizer, então ficou olhando para o nada e deixou as lágrimas dela rolarem sobre seu ombro enquanto ela ia contando suas misérias. De como já tinha sido abusada pelo pai e pelo irmão mais velho. De como por isso sua mãe se separou. Como agora a tinha exilado depois de se casar de novo. Da sua imensa solidão e do fardo do desejo constante dos homens, ao qual não sabia lidar. A tarde caía, a sensação do rosto molhado dela no seu peito, seus corpos colados, ninguém próximo. O beijo inesperado. O sexo selvagem que se seguiu foi praticamente um estupro. E até as aulas recomeçarem ele foi "violado" várias vezes...
🎼A lembrança do silêncio
Daquelas tardes, daquelas tardes.
A vergonha no espelho, daquelas marcas
Daquelas marcas...🎵🎶
Incrível como só escutava as músicas quando estas escutavam suas memórias. Há quantos anos não ficava tão chapado? E isso só tornava as memórias mais reais, mais claras. Como ele podia ter sido tão ingênuo? Tão burro? Tão puritano? Adorava estar com ela. Mas seu amor era desesperado, angustiado e aflito! Doloroso demais. Seu pai era só orgulho (anos depois confessou que achava que ele era viado), e a cada marca de unha ou de mordida que ganhava (e que sempre tentava esconder) fazia uma festa! Seu avô, incrível conhecedor da alma humana, a tratou com imensa cortesia e galanteio quando a conheceu. Assim que ela saiu falou: "Bonita demais para você meu neto. Ela é o sonho de uma noite e o pesadelo de uma vida". Discorreu do seu jeito calmo de como, por mais que ela o amasse, ele nunca se sentiria confiante de não perde-la. De como só existiam duas alternativas: se entregar e ter o coração estilhaçado quando alguém com mais recursos a levasse; ou aproveitá-la como um bombom raro, que aos pobres só é dado comer uma vez..."
🎼Uma menina me ensinou
Quase tudo o que eu sei
Era quase escravidão
Mas ela me tratava como um rei
Ela fazia muitos planos
Eu só queria estar ali
Sempre ao lado dela
Eu não tinha para onde ir🎶🎵
Depois ao seu estilo tradicional, seu bom velhinho discorreu sobre os vários casos de ciúme patológico que acompanhara em seus 35 anos de investigador de polícia; comprou-lhe Perdoa-me por me Traíres, de Nelson Rodrigues, o obrigou a assistir A Última Sessão de Cinema, onde Cibyll Sheperd fazia o papel de uma adolescente fútil e egoísta e desenterrou uma estória de Sócrates contada por Xenofante sobre a prudência de se afastar da beleza extrema. Ao lhe contar todo o sofrimento dela, sua única reação foi: "Ninguém teve dó dela, acha que ela terá de você?". Nunca transou com uma mulher igual, nem com tanto prazer, porque a cada vez sempre imaginava que aquela seria a última. Quando começaram as aulas a ajudava nas matérias, dormia na chácara onde a conhecera quando não tinha perigo da família dela aparecer, sempre a ouvia com atenção e era carinhoso, passeava pela cidade de mãos dadas. Ao mesmo tempo que curtia a admiração dos conhecidos, esperava, numa mistura inexplicável de tristeza, ansiedade e alegria, que lhe a roubassem. Isso nunca aconteceu. Foi bastante assediada por muita gente que ele acreditava ser melhor do que ele. Nunca deu bola para ninguém. De uma forma que não conseguia explicar isso que lhe inflava tanto o ego no início, depois de um tempo, passou a exasperá-lo. Quando já se iam um ano e alguns meses de namoro, ficou duas semanas na praia no carnaval sem ela, com colegas do teatro amador que passou a fazer. Lá percebeu quanto o tamanho da carência dela o assustava. O quanto o seu ciúme, que fazia de tudo para esconder, lhe doía como uma faca em brasa. E quanto o dela, que era enorme, o apavorava. Mas a sensação de poder que ela lhe dava...
🎼Eu que tenho medo até das suas mãos
Mas o ódio cega e você não percebe
Mas o ódio cega..."
"Eu que tenho medo até do seu olhar
Mas o ódio cega e você não percebe
Mas o ódio cega..🎵🎶
O ponto de virada foi a faculdade. Teve que mudar de cidade, tinha que ficar um pouco com a família e estudar nos finais de semana. Diferente do que temia, se saiu muito bem. Finalmente tinha pessoas que podia conversar sem serem seu avô. Discutir livros, filosofia. Ter companhia da sua idade para assistir a peças de teatro e filmes franceses. As vezes que ela o visitou e que conheceu seus novos amigos deixaram gritante a distância cultural entre eles. A amava, mas já não queria estar atrelado. O inverso dos temores do seu velhinho. Isso lhe doía ainda mais. Se sentia um canalha por querer terminar com ela e um covarde por não conseguir. E nesse processo as brigas aumentavam mais e mais. Até que em uma delas, encheu-se de coragem e terminou. Ela o olhou de uma forma vazia por alguns segundos. Aí se virou e como um zumbi se jogou na frente de um ônibus na rua!
🎼Mesmo querendo eu não vou me enganar
Eu conheço seus passos, eu vejo seus erros
Não há nada de novo, ainda somos iguais
Então não me chame, não olhe para trás🎵🎶
Ficou um mês na UTI, seis meses na ortopedia e dois na psiquiatria. Esteve com ela o máximo de tempo que pôde. Reprovou naquele ano por conta disso. Voltaram a conversar como no começo, mas sempre deixou bem claro que não tinha retorno. Quantas e quantas vezes agradeceu à Deus por não ficar nenhuma cicatriz permanente em seu rosto.
Mantiveram contato durante muito tempo, mas acabou ganhando uma bolsa para estudar no exterior e este se perdeu. Nem um dia a procurou, nem um dia a esqueceu. Hoje, casado e com dois filhos, psicólogo, antes de apagar na brisa dos entorpecentes, se perguntava o que teria acontecido se não tivesse sido tão esnobe e covarde. A última coisa que ouviu antes de apagar foi:
🎼E eu que tinha apenas 17 anos
Baixava minha cabeça para tudo
Era assim que as coisas aconteciam
E era assim que eu via tudo acontecer"
"Camila, Oh!
Camila, camila...🎵🎶