HOJE É JÁ OUTRO DIA

Eu amo tudo o que foi

Tudo o que já não é

A dor que já me não dói

A antiga e errônea fé

O ontem que a dor deixou,

O que deixou alegria

Só porque foi, e voou

E hoje é já outro dia.

Fernando Pessoa

Lembro de me ver refletido em seus olhos.

Lembro que as vezes, ela me dizia coisas sem sentido.

Quando ficava cansada de fingir, bebia e se tornava amável.

Clara, seu tio a chamava de '' galeguinha''. Seus cabelos vermelhos e longo escorriam por seu rosto, vivia procurando o que fazer, não parava nunca, então se cansava facilmente de tudo e todos.

Então por um tempo estive lá.

Então ela foi se distanciando conforme se movia, cada vez mais longe, cada dia menos presente.

Saindo da farmácia com a sacola cheia de descongestionante nasal e antiácidos, vejo que Mônica conversa com alguém no telefone encostada na porta do passageiro do meu carro. Quando me vê, faz um tchau com a mão direita enquanto sustenta o aparelho com a esquerda.

- Olha, te ligo mais tarde. Ele chegou aqui...

O ele sou eu .

- Falávamos de você, acredita!

- Como vai as coisas, Mônica?

Ela me deu um abraço bem apertado. Seu cabelo cheirava a tuti-fruti.

- To morrendo de fome, já almoçou?

Com a ressaca que eu estava sentindo, nada entraria no meu estômago sem que eu vomitasse. Ainda sim, acompanhei até um restaurante onde ela se serviu de um enorme prato de salada seguido de uma fatia generosa de lasanha.

- … e foi isso que aconteceu. Mauro precisou deixar o lugar antes que os seguranças o apagassem com aquelas malditas máquinas de choque. Ele deixou uma maldita conta de mais de cem pratas que eu tive de pagar. Logo está me devendo duzentas, visto que é a segunda vez que isso acontece. Não sei se é de propósito ou apenas circunstancial, mas está funcionando para ele.

- Por Deus, Oliver... porque ainda se mete com essas pessoas?

- São as únicas que conheço.

- São bêbados...

- E o que te faz pensar que não sou um?

- Isso não tem graça.

- Pois é, não é para ter mesmo.

- Está com uma cara horrível. Devia se cuidar. Não pode continuar fazendo isso por muito mais tempo...

- Olha só, o que você quer? Vai acabar estragando seu almoço se continuar com isso.

- Eu me preocupo com você, Oliver...

Me levantei depois de matar um copo de água.

- Calma ai, fica mais um pouco, preciso te falar uma coisa...

- Que se dane. A gente não se vê tem o que? Dois meses? Agora vem querendo ditar regras? Eu não estou pedindo conselhos, não quero que me indiquem que caminho seguir.

- Isso é ridículo. Todo mundo precisa de ajuda.

- Quer ajudar alguém? Ensine esse cara a mascar, veja só, esta comendo como uma vaca ruminante. Isso tira o apetite de qualquer pessoa.

O tal cara me encarou. Era um gordão com dois pratos sobre a mesa.

- Me desculpe, cara, mas acho que falo por todos aqui.

Ele me encarou, ainda puxando um fio de macarrão pelo canto da boca.

Paguei a conta, fui ao banheiro e lavei meu rosto. Admirei as marcas de expressão pesadas em baixo dos olhos, senti meu hálito, nada bom. Já tem algum tempo que tinha desistido. Não desistido da vida. Mas desistido. Só isso. Você só segue em frente e aceita o que a vida lhe entrega. Então não somos santos e nem demônios. Somos apenas cães presos a coleiras guidas por nos mesmos. As vezes puxamos demais e falta ar. Então afrouxamos a coisa e a consequência da liberdade é tão horrível que só percebemos isso quando mordemos a roda do carro. Dai nos machucamos, a coleira aperta novamente, e não tem meio termo. Seja lá o que isso signifique.

Meus olhos estão meio afundados no rosto, a pele não tem uma aparência boa.

No estacionamento Mônica avisa que seria legal se eu aparecesse na sua casa as 20.

- Sabe que ela gostaria de acertar as coisas com você.

- Olha, não precisa fazer isso.

- Só estou tentando ajudar.

- Já falei o que acho sobre ajuda.

- Não é legal te ver assim.

- Acredite, estou bem. As vezes acho que bem demais. Por isso me esbaldo.

- Ela disse...

- Olha só, ela só esta dizendo o que eu gostaria de ouvir. Calada ela me é mais útil. Gosto do sabor do silêncio e da expectativa que ele alimenta.

- Que se dane. Sabe onde moro. Se quiser aparecer, as 20 horas, abriremos a primeira garrafa de tequila, esteja você lá ou não.

A tarde passou quente e desagradável.

O calor atrapalha o raciocínio lógico.

Te da sede.

Os cigarros ficam com um sabor estranho.

Tem toda a poluição que atordoa.

Ninguém vai muito longe num sol de 40 graus.

Perto dos 40, não se tem o mesmo folego dos 20 e as coisas fazem ainda menos sentido que aos 12, com todas aquelas coisas acontecendo no corpo, as descobertas que enchem de dúvidas e alimenta. O coração bate a mil por hora, tem tanto sangue sendo bombeado e você se acha invencível.

As 20 horas, Laércio atende a porta. Vestido todo de terno e gravata. Se alguém conseguiu chegar a algum lugar na vida, não foi esse cara. Tenta parecer bem confiante no caminho da porta até a piscina. Tem um belo sorriso para disfarçar seu desespero.

- Pensamos que você não viria, cara... é bom te ver.

São 20 horas e estou tão sóbrio que me sinto desconfortável. Tem um punhado de gente que eu não via ha tempos. Gente com quem cresci e que agora são completos estranhos. A coisa toda era um tipo de reunião. Tinham contratado até um buffet.

A casa de Mônica é legal. Gosto de como é grande e bem ventilada. Portas grandes, pé direito alto, os moveis parecem pequenos e não ficam amontoados. Casa antiga de quando uma casa ainda podia ser chamada de lar.

As pessoas vêm me cumprimentar. De algumas nem lembro o nome.

Tem música ruim rolando, tem um bar montado sobre o gramado, que é pra onde eu me projeto aos poucos diante de paradas e abraços e apertos de mãos.

Clara, seu tio a chamava de Galeguinha.

Seus olhos claros, não sei bem se verdes ou azulados... ela me olha e espera que eu diga algo. Eu espero pela cerveja no balcão do bar. Ao meu lado, ela abre um sorriso meio forçado, e diz:

- E ai!

Então o momento não é nem um pouco parecido com tudo que projetei. É tudo tão frio. É tudo tão distante do que um dia pareceu ter sido próximo.

Eu cheiro a cigarros e bebida barata. Tenho esse problema mal resolvido do passado relacionado a prostitutas de sentimentos. São da pior espécie quando você se deixa levar. Costumam te deixar com a gonorreia da amargura e seu coração fica tão fodido quanto um pinto todo ''pusolento'' .

Eu meio que bebi aquela cerveja toda ali mesmo no balcão antes de pedir outra.

- Você não mudou nada, Oliver...

- Eu temia que dissesse isso.

– Será que você não tem um cigarro ai?

- Eu preciso de um isqueiro. Podemos fazer uma troca.

- Me desculpe. Preciso de um isqueiro também.

Ela pegou seu copo de caipirinha que o garçom acabara de depositar a nossa frente.

04/02/2020

10:38h

Cleber Inacio
Enviado por Cleber Inacio em 04/02/2020
Código do texto: T6858005
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