Faltando um pedaço

[Dia, interior da cabana de Ganimedes na floresta de Arden. No centro do palco um biombo divide o espaço em dois ambientes: à esquerda, o mesmo sofá visto na cena anterior, e à direita, uma cama de casal e uma cadeira rústica. Sobre a cama, Orlando e Ganimedes - ou melhor, Rosalinda - estão deitados abraçados, sob os lençóis. Pela esquerda, entra Aliena - aliás, Célia - e surpreende o casal.]

- Interrompo alguma coisa? - Pergunta Aliena, cobrindo a boca para não rir.

- E esta, quem é? - Indaga Orlando.

- Minha prima, Aliena - explica Ganimedes. - Praticamente, minha irmã.

- Encantado, Aliena. Eu sou...

- Orlando, o poeta - interrompe-o Aliena. - Vi muito da sua poesia pedestre pendurada pelos galhos da floresta. Alguém deveria multá-lo por sujar as árvores com tão má literatura.

- Esteja certa de que já o castiguei de modo suficiente - aparteia Ganimedes. - Duvido muito que volte a tais procederes.

O casal se beija, mas Aliena insiste:

- Como então, Orlando... já esqueceu a sua amada, Rosalinda?

- A minha amada aqui está, em meus braços - replica Orlando. - Esta é Rosalinda.

- A única Rosalinda da floresta de Arden - assegura Ganimedes. - E o que faz aqui tão cedo, prima? Imaginei que só a veria à noite...

Aliena senta-se na cadeira à direita do palco, em frente à cama.

- Não foi intencional, te asseguro - justifica-se. - Apenas encontrei aquela pastora, Febe, e me perguntou se poderia vir ter contigo. Então, resolvi antecipar-me, caso ela resolvesse aparecer sem avisar...

- Como então, você tem uma admiradora, Rosalinda? - Graceja Orlando, apertando-a contra si.

- Mal sabe a Febe que eu e ela gostamos da mesma fruta - retruca Ganimedes. - Mas decerto, querida prima, que agiste bem. Nem posso imaginar o que a tresloucada faria se entrasse aqui e me encontrasse na cama com tão belo moço.

Neste momento, batem na porta, à esquerda do palco. Orlando, Ganimedes e Aliena trocam olhares.

- Abre, Aliena! Sou eu, Febe! - Grita uma voz vinda da coxia.

- O que eu faço? - Sussurra Aliena para os dois.

- Veja o que ela quer e a despache! - Sussurra Ganimedes de volta.

[Aliena dá a volta ao biombo e segue em direção à coxia. Volta em seguida acompanhada de Febe, a pastora. As duas sentam-se no sofá. No ambiente ao lado, Orlando e Ganimedes põe as mãos em concha nas orelhas para ouvir a conversa.]

- Diga-me, Aliena: porque Ganimedes me tem evitado, se já deixei claro meus sentimentos por ele? - Indaga a pastora.

- O fato de que você tenha se declarado, não significa que seu amor será correspondido - pondera Aliena. - Infelizmente, Ganimedes não poderá lhe satisfazer da forma que um homem, em sua plenitude, poderia satisfazer a uma mulher. Meu primo apenas está lhe poupando uma decepção.

A pastora leva as mãos ao rosto, vencida.

- Oh! Triste sina a minha! Apaixonar-me por quem não me quer...

O abatimento não dura muito. Retira as mãos do rosto, e ergue a cabeça.

- Aliena, acredite: isto só aumenta o meu amor por Ganimedes!

- Mas acabei de dizer-lhe...

- Acabou de me dizer que Ganimedes não é mais um homem completo - atalha Febe. - Sim, percebo agora o sentido oculto em suas palavras; sou pastora, mas não sou tola. Ganimedes é ainda mais nobre do que eu poderia supor: evita-me, na crença de que não poderei aceitá-lo como é... faltando um pedaço!

E, perante o silêncio de Aliena, indaga:

- Como ele perdeu... a parte?

Aliena olha na direção do biombo, como que em busca de inspiração. Finalmente, vira-se para Febe e segura as mãos dela, encarando-a:

- Ele foi capturado pelos mouros... o castraram para vendê-lo como escravo, mas ele conseguiu fugir posteriormente.

- Oh, pobre Ganimedes! Que sina horrível para um moço tão bonito!

E erguendo as mãos de Aliena, decidida:

- Pois diga-lhe que eu o aceito assim mesmo, com todo o amor de que meu coração é capaz!

- Talvez você devesse pensar melhor... - sugere Aliena.

Febe balança negativamente a cabeça antes de responder.

- Não tem ele cinco dedos em cada mão e uma língua? O que posso eu pedir mais?

- Avaliando por esse ângulo... - reconhece Aliena.

As duas erguem-se e saem pela esquerda do palco. As luzes se apagam.

- [02-02-2020]