Te amo até te matar

Tudo começou com Kill Bill. E não poderia ter sido mais apropriado.

Pocotó. Pocotó. Pocotó. Eu conseguia ainda, depois de tantos anos, ouvir o som imaginário de nossos cavalos feitos de cabos de vassoura. Pocotó. Pocotó. Pocotó. Eu o via com aquele colete com estampa de vaquinha, uma grande estrela amarela pendurada do lado esquerdo, perto do coração, e o chapéu marrom, que um dia compuseram sua fantasia de Woody em seu aniversário de sete anos. Pocotó. Pocotó. Pocotó. O xerife me perseguia. Ele era rápido demais.

Eu tinha, por vezes, um lenço amarrado no rosto, deixando apenas os olhos expostos, ou uma roupa toda preta, típica de gatuna. Ele corria atrás de mim.

Inevitavelmente eu era encurralada por ele, o mocinho, contra alguma parede, ou eu apenas caia do meu cavalo e ficava a mercê de sua justiça.

— Seus dias de maldade chegaram ao fim, Gata Negra.

— Eu nunca me renderei a você, Xerife.

— Você não tem escolha. Últimas palavras?

— Vá para o inferno – eu respondia, me sentindo uma verdadeira vilã.

— Talvez, mas só depois de você.

Ele juntava as duas mãos em forma de arma e atirava em mim. Bang. Bang. Eu estava morta. Alguns minutos depois, ouvíamos a voz de sua mãe gritando que o lanche estava pronto e corríamos em direção à mesa.

Eu sempre era a bandida e ele era sempre o mocinho. Eu roubava joalherias, bancos e ele sempre me matava.

O que me levava a roubar bancos e fugir em cavalos? Eu não sabia naquela época. Mas, aquele tempo todo, foi por causa dele. Enquanto minha irmã mais velha, minhas amigas e todas as garotas da minha idade passavam o tempo brincando de Barbie e assistindo A Bela e a Fera, nós assistíamos filmes que ensinavam o valor da verdadeira amizade e brincávamos de nos matar. Dele me matar.

Um dia, percebi, nós crescemos. Ele se tornou cada vez mais aficionado em Westerns, de John Wayne à Jonah Hex. Passou a sair com os meninos da sua escola, pra jogar futebol e vídeo game e sobrando para mim as meninas da minha escola, para passear pelo shopping e falar de garotos. Nos víamos de vez em quando para jogar vídeo game. Mario Kart, Mario Party. Mario. E Mortal Kombat e Street Fighter.

Aos dezesseis, estávamos no auge de nossa adolescência. Seus cabelos loiros estavam na altura dos ombros e ele era fã de Iron Maiden. Foi bem nessa época que ele arrumou sua primeira namorada. Não durou muito. Então ele teve uma segunda, que também não durou muito. Mas a terceira, essa durou.

Nunca fui considerada uma adolescente bonita. Ainda não faço parte do padrão. Hoje, honestamente, isso não me incomoda, mas quando a gente é adolescente ser atraente é de extrema importância. É por isso que os meninos te julgam. Como nunca fui muito interessante, não surgiram muitos rapazes interessados em mim, exceto por um, o Arthur. Arthur era um rapaz divertido, com quem eu passava horas do meu dia conversando sobre Cavaleiros do Zodíaco. Foi com ele que dei meu primeiro beijo, mas guardei essa informação a sete chaves. O motivo? Arthur também não se adequava ao padrão de beleza da sociedade e era constantemente zombado por seu nariz grande. Enquanto ele não se importava em estar com a estranha da escola, eu me importava em estar com o narigudo. Esse era o tipo de garota que eu era então. Não vou dizer que não quis ficar com ele porque eu era completamente apaixonada por Pedro, apesar de ser. Eu estava decidida a seguir com a minha vida e não ficar esperando ele terminar com a namorada número três.

Eu, enfim, tive um namorado. Um, dois, três. Pedro, eu acho, já estava na quinta. Gostávamos de Dropkick Murphys e de sair juntos para beber. Ele terminou, eu terminei.

Trocávamos HQs, livros, DVDs, histórias, cervejas, cigarros, maconha. O que tínhamos era maior do que nossas brincadeiras de infância, nossas tardes de jogos da adolescência. Era real. Éramos amigos, parceiros, próximos, tão, tão próximos. E o que eu sentia por ele não era o que eu sentia quando tinha cinco e nem quinze. Era tão forte e sincero quanto o que Tulipa sentia por Jesse.

Eu continuava roubando bancos para chamar sua atenção e ele continuava me matando. Mas isso não seria mais assim.

Usava um vestido branco de verão e um batom vermelho. Os cabelos grandes, ondulados e rebeldes caiam despreocupados. Eu estava despreocupada. Surpreendentemente. Tinha que aproveitar o surto de coragem que me acometeu. Poucas vezes em minha vida havia me sentido tão confiante, tão bem comigo mesma. Estava tomando as rédeas da situação, de uma vez por todas, pronta para seguir em frente. Estava vestida para matar, pois era exatamente o que tinha ido fazer.

Ajeitei uma mecha do cabelo que estava em meu rosto. Apertei o número de sua casa e esperei a voz sonolenta que veio do interfone. Não pareceu surpreso por estar ali, mesmo depois do que havia acontecido entre a gente há uma semana. Talvez ele imaginasse que eu faria isso, mais cedo ou mais tarde. Tinha aceitado seu destino. Entrei na vila e caminhei em direção à porta da casa dele. Senti um buraco se abrir em meu estomago e tive que segurar a vontade de dar meia volta e ir embora. Mas não faria isso. Não chegara até ali para desistir. Iria ganhar, ao menos uma vez.

Ele me parecia entediado, esfregou o olho com o punho fechado. Devia estar dormindo, pois é o que costumava fazer às onze da manhã de uma quarta-feira, um dia em que pessoas normais não costumam tomar grandes decisões. Ele estava de bermuda jeans, provavelmente vestida apenas para atender a porta, e sem camisa, revelando no peito os pelos claros e a barriga levemente protuberante. Abriu espaço para que eu entrasse em silêncio, o que fiz sem cerimônias. Sentei na grande poltrona de couro preto que ficava na sala e ele se sentou no sofá na minha frente. Esperou. Compreendi seu silencio como uma pergunta.

— Eu vim te matar.

Ele arqueou a sobrancelha esquerda como fazia sempre que eu falava algo que parecia uma grande bobagem pare ele.

¬— Não quer beber nada antes disso? – perguntou sem ironia.

— O que você tem?

— Não muita coisa. Eu não bebo mais, você sabe. Desde aquele último porre que tomei logo que você-sabe-quem me deu um pé na bunda. Tenho um uísque para quando meu pai vem, um vinho para quando minha mãe vem e tem algumas cervejas que o Carlinhos trouxe no último jogo do Fluzão.

— Uma cerveja está ótimo.

Foi até a cozinha e voltou com uma Heineken e um copo de guaraná para si. Patético. Sentou-se novamente à minha frente.

— Então, veio me matar?

Dei um gole na cerveja gelada antes de responder. Havia ensaiado, mas era como se tudo o que pensei tivesse repentinamente sido apagado da minha mente. Tinha um rascunho dentro de minha bolsa, mas não conseguia me lembrar de nada o que havia escrito nele. Como começava mesmo? “Pedro...”. Bom, bom. Começar com o nome dele me faria ganhar algum tempo.

— Pedro.

— Natália.

Como o odiava. Como ele conseguia dizer meu nome com tanta calma? Ainda mais com esse sotaque carioca carregado. Encarei os olhos verdes com raiva. Má ideia, má ideia. Como pude esquecer que ele tem o os olhos verdes mais lindos dentre todos os olhos verdes que existem por ai? Fechei os olhos com forma e suspirei pesadamente.

— Eu te odeio.

— Só porque eu disse seu nome com meu sotaque carioca carregado ou porque meus olhos verdes são os mais lindos dentre todos os outros olhos verdes que existem por ai?

Presunçoso... Quem contou para ele?

— Por que decidiu me matar? Ou melhor, por que agora?

Abri os olhos. Isso era fácil.

— Porque eu estou cansada de tudo me lembrar você. De não conseguir ouvir Los Hermanos, de não conseguir assistir um jogo de futebol com meu pai, de te enxergar em todos filmes adolescentes. Principalmente os oitentistas. Principalmente os do John Hughes.

O olhar dele mostrava compreensão. Ele colocou o copo de guaraná em cima da mesinha ao lado do sofá e se ajoelhou em frente a mim. Fechou os olhos e esticou o braço para os lados.

— Faça o seu pior.

Meus olhos encheram-se d’água. Usei minhas duas mãos para abaixar seus braços brancos e sardentos. Assim de perto ele conseguia ser ainda mais bonito. Minha raiva se esvaiu. A quem queria enganar? Amava-o. Com todo meu coração. Passei a mão esquerda pelo rosto dele e dei um sorriso triste quando o vi fechar os olhos. Pelo menos dessa vez ele se calaria. Calaria suas reclamações, suas chatices, suas opiniões esdrúxulas. Ele sabia que eu precisava desse momento.

— Eu te amo. Nossa, eu te amei por tanto tempo. Eu não sei como se mata um sentimento desses. A única coisa que eu sei é que chega um tempo na vida de uma pessoa em que ela precisa pensar mais nela mesma. Eu tenho direito de ser feliz. De encontrar uma pessoa e constituir uma família e não ficar pelos cantos temendo o dia em que você apareça com uma menina enganchada no seu braço. Você não é o último homem do mundo. Tudo bem, você tem os seus méritos. Mas você é egoísta, amargurado, vingativo, ouve músicas espanholas bregas, seus filmes favoritos são incrivelmente chatos e você prefere os heróis da DC aos heróis da Marvel.

Os olhos dele se abriram devagar e ele tentou inutilmente abafar um riso.

— Que pessoa normal gosta do Super Homem? — perguntei, com revolta.

— Que pessoa normal gosta do Capitão América?

— Não fale do Capitão! Sério, tem certeza que você LEU a Guerra Civil?

— Tem certeza que você leu qualquer coisa da DC?

— Eu estou tentando terminar de te matar aqui.

— E eu estou tornando isso menos doloroso. Nunca daríamos certo, você sabe disso. Um dia você iria simplesmente olhar para o lado esquerdo da cama e pensar “eu me casei com um fã de George Romero”. Você odeia filmes de zumbis. E você é o tipo de pessoa que gosta de gatos e eu gosto de cachorros. Você gosta dos filmes do Wes Anderson, sabe. Vamos encarar os fatos. Somos tão opostos como fãs de Star Wars e de Star Trek.

Permaneci em silêncio. Era esse o momento em que eu faria o que me treinei o tempo todo para não fazer. De que adiantam rascunhos se nunca os seguíamos?

— Por que você nunca me amou?

De todas as perguntas que podia fazer...

— Você sabe que não existe resposta para esse tipo de pergunta, Nat. Eu não poderia estar com você por saber que seu sentimento por mim é algo que eu nunca consegui retribuir. Mas o porquê de eu nunca ter conseguido te amar, e o porquê de eu amar alguém que nunca me amou, eu realmente não consigo entender.

— Talvez nós sejamos apenas masoquistas.

— Isso combina bem comigo, mas não com você — ele segurou minhas mãos. — Você merece um homem que apareça com um boombox na frente da sua janela, um homem que entre pela sua porta, no meio de uma reunião de mulheres mal-amadas, dizendo que você o completa.

— Você não está ajudando citando cenas do meu diretor favorito, Pedro.

— Desculpa — disse, soltando minhas mãos.

Ficamos em silencio por um tempo. Coloquei as mãos na cabeça.

— E então?

— Eu não sei.

— Não sabe o quê?

— Como te matar metaforicamente.

— Você estava indo bem.

— Sério mesmo?

— Mais ou menos. Quer dizer, você estava pegando meio leve. Eu sou pior que isso. Se o Super Homem é seu maior trunfo contra mim, acho que você está perdida, baby. Procure minhas piores facetas.

— Eu acho que esse não é o caminho. Eu te conheço bem o suficiente para conhecer o pior e o melhor de você.

— O que vai fazer?

— Ser prática.

Olhei mais uma vez atentamente para o rosto do homem que eu amava. Fiz uma arma com minhas mãos. Ele abriu os olhos e me encarou de maneira firme, como ovelha sendo abatida, compreendendo que aquilo era para o bem maior. Apontei os olhos para ele e não hesitei.

— Bang bang, você morreu.

Nana O
Enviado por Nana O em 15/01/2020
Código do texto: T6842815
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