Hoje pela manhã um anúncio no jornal chamou minha atenção: um convite para a exposição e vendas de móveis e objetos antigos que pertenceram a Marla Bittencourt falecida recentemente aos 95 anos. O evento seria em um antiquário na rua do Lavradio no centro do Rio de Janeiro a partir das 14:00 horas no dia 16.
          Marla foi a cafetina mais famosa do Rio de Janeiro depois da segunda guerra. Em um terreno de dez mil metros quadrados, comandou um império do sexo pago. Havia um casarão construído no século XIX com 20 quartos, piscina, salão de festas e um restaurante exclusivo chamado Antiquité(antiguidade) onde milionários, artistas, políticos(inclusive presidentes) frequentavam, todos com direito a atendimento VIP e passagem de acesso privativa.
          Elegante, bela, cosmopolita, articulada, Marla era muito poderosa e tinha uma vida discreta. Nunca aceitou nenhuma oferta, e foram várias, para se prostituir. Suas meninas estavam sempre elegantes, limpas e cheirosas.
          Circulou durante muito tempo uma história que Marla e Pedro Paulo Gusmão, herdeiro político de um ilustre senador, família poderosa, apaixonaram-se perdidamente. O jovem chegou a enfrentar o pai dizendo que ia morar em Paris com a amada, mas o velho agiu rápido e colocou Marla em seu devido lugar ameaçando-a destruí-la completamente caso não terminasse o romance. Meu filho vai ser um grande político e não pode se unir a uma mulher como você, finalizou o senador. O romance acabou e cada um seguiu seu caminho.
          Fascinado por antiguidades fui a exposição disposto a comprar algum objeto. No antiquário fiquei extasiado. Móveis luxuosos, imponentes, objetos riquíssimos e valiosos mostravam o bom gosto da proprietária. Na parte de cima foi reproduzido o quarto que ela dormiu até o dia de sua morte: cama com dossel, objetos de toucador em ouro e prata, tapetes persas, poltrona de leitura. Tudo muito sofisticado. Em uma cômoda uma caixa de vidro guardava um caderno de capa luxuosa contendo o diário.
- Senhor esse caderno é um diário? - perguntei a um funcionário -
- Sim. Mas fala apenas de um grande amor que ela viveu. - ele respondeu -
- Quanto custa?
- Já foi vendido. Um velho comprou. Está dentro dessa caixa para ninguém conseguir ler. Exigência dele.
- Qual o nome dele? 
- Não sei. Apenas o dono do antiquário sabe.
          Como eu gostaria de ler aquele diário. Estava morrendo de curiosidade. Se estivesse a venda eu compraria. Um senhor bem idoso aproximou-se e comentou:
- Um diário sempre causa curiosidade não é mesmo?
- É verdade. Principalmente uma história de amor.
- Uma história de amor linda, porém triste. - ele falou emocionado -
- Toda história de amor em algum momento ela é triste. - filosofei -
- O amor não é para covardes. Amar exige coragem.
          Um homem abriu a caixa de vidro, tirou o diário e entregou ao velho.
- Muito obrigado por nos ceder o diário de d. Marla por um tempo sr. Gusmão.
          O velho pegou o diário e saiu devagar.
- Ele é Pedro Paulo Gusmão? - perguntei curioso -
- Sim. O grande amor de Marla Bittencourt.
- Você leu o diário?
- Sim.
- O que tem nele?
- Preconceito, intolerância, abuso de poder, enfim, o raio x do Brasil na época.
- O raio x do Brasil de hoje. - concluí -
- Hábitos são difíceis de mudar meu caro.
          O enterro de Marla foi como sua vida: discreto. Os poucos amigos que foram, choraram com sinceridade. Sua vida, sua história agora pertenciam ao seu grande amor. Justo não é mesmo? Afinal Pedro Paulo é a outra parte da história. Ele comprou o sigilo de um grande amor.
José Raimundo Marques
Enviado por José Raimundo Marques em 14/01/2020
Reeditado em 14/01/2020
Código do texto: T6841844
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