O Amor Está No Ar

A família Pope estava sentada à mesa do café da manhã, quando um ronco de motor fez-se ouvir sobre a casa. Todos olharam apreensivos para o teto, como se o aparelho que emitia aquele ruído desagradável fosse despencar pelo forro a qualquer momento. Tal não ocorreu, felizmente: o que todos ouviram a seguir foi um estrondo, no pomar dos fundos da residência de veraneio. Seguido pela mulher e filhas, o velho Pope saiu pela porta da cozinha, esbaforido.

- Mas que diabos! - Praguejou, ao ver a cena de destruição em meio aos canteiros de madressilvas e macieiras retorcidas. Um pequeno avião monomotor acabara de fazer um pouso de emergência, partindo uma das frágeis asas cobertas de tecido e abrindo um sulco no chão, como se fosse um arado caído dos céus. De dentro da estrutura, que resistira admiravelmente bem ao choque, desceu um jovem cavalheiro em trajes de aviador, jaqueta e touca de couro, óculos de proteção sobre os olhos, uma echarpe de lã pendendo do pescoço. Ele apalpou-se, como que para certificar-se de que ainda estava inteiro.

- O senhor está bem? - Indagou aflita a Sra. Pope.

- Melhor do que poderia imaginar, senhora! - Exclamou o rapaz alegremente, puxando os óculos para o alto da cabeça. E virando-se para o Sr. Pope:

- Lamento pelos prejuízos causados à sua propriedade, senhor, mas espero poder ressarci-lo condignamente.

Os Pope aproximaram-se curiosos do aeroplano sinistrado. Nunca nenhum deles havia visto um aparelho daqueles de perto, e raramente passando nas alturas; não era uma visão das mais comuns.

- Essas coisas realmente voam - comentou o Sr. Pope, tocando cautelosamente na asa quebrada do avião como se se tratasse de um ser vivo.

- Voam... e também caem, eventualmente - admitiu o rapaz com verve, o que provocou algumas risadinhas das garotas Pope.

- O senhor o construiu? - Indagou a Pope caçula, Marjorie.

- Bem... não - admitiu o rapaz. - Eu o comprei de um francês; ele pretende começar uma produção em grande escala. São aeronaves de passeio, por enquanto para apenas um ocupante. Mas acho que preciso tomar mais algumas aulas antes de me arriscar no próximo voo.

- Decerto - aduziu a moça, com gravidade.

O Sr. Pope achou que já era hora de fazer as apresentações.

- Eu sou o Sr. Pope, esta é a Sra. Pope, e estas são nossas filhas, Daphne e Marjorie.

- Daffy! - Antecipou-se a primogênita, uma garota grande de cabelos acobreados e dentes irregulares.

- Marjorie - identificou-se a caçula, menor, mais esguia, mesmos cabelos ruivos, mas dentes alinhados, estendendo-lhe a mão.

- R.A.G. Trafford, um seu criado - identificou-se o rapaz, apertando suavemente a mão que lhe era estendida.

- O senhor não gostaria de tomar o desjejum conosco? - Atalhou a Sra. Pope, sempre prática.

- Bem... seria um prazer. Se não for dar trabalho, naturalmente - redarguiu Trafford.

- Sempre se pode colocar mais um prato na mesa - respondeu a senhora, num tom que não admitia réplica.

* * *

O Sr. Pope, as filhas, e o hóspede inesperado sentaram-se ao redor da mesa da cozinha, enquanto a Sra. Pope terminava de preparar o café da manhã. Trafford viu-se alvo da curiosidade da família.

- O senhor disse que havia comprado essa aeronave de um francês? - Indagou o pai.

- Sim, Jacques Droguet... - assentiu o rapaz. - Ele aperfeiçoou o Demoiselle, um modelo desenvolvido pelo brasileiro Santos Dumont, e espera construir versões maiores, para dois e quatro tripulantes, que poderão ser usados numa série de atividades civis e militares.

- Aeroplanos para uso militar? Pensei que só eram usados em missões de reconhecimento - surpreendeu-se o Sr. Pope.

- Por ora, sim, e creio que esse é o único fim militar que o brasileiro gostaria que dessem à sua invenção - ponderou Trafford. - Mas sejamos francos: aviões poderão se tornar numa arma de guerra quando conseguirmos aumentar seu tamanho, velocidade e raio de alcance. Imagine, por exemplo, um avião com capacidade para transportar bombas e despejá-las sobre um alvo, voando alto demais para ser atingido pela artilharia abaixo...

- É uma imagem terrível - admitiu Marjorie, intrometendo-se na conversa dos homens. - E se essas bombas errarem o alvo e atingirem pessoas inocentes... como o seu avião quase fez conosco, a pouco?

Trafford encarou a jovem desconcertado.

- Bem, senhorita... eu sofri um acidente, não estava deliberadamente tentando lançar minha aeronave contra a sua residência.

- Que modos são esses, menina? - Aparteou o Sr. Pope, cenho franzido.

- Minha opinião - arguiu Marjorie, baixando os olhos para a xícara à sua frente na mesa.

- Como toma o seu chá, Sr. Trafford? - Indagou a Sra. Pope, aproximando-se com um bule de prata.

- Com leite, por favor - informou o rapaz, aliviado pela mudança no rumo da conversa.

Os Pope eram adeptos do tradicional desjejum britânico completo, o que incluía rins de cordeiro ao molho, ovos fritos, bacon, salsichas e torradas. Trafford gracejou, dizendo que se comesse tanto assim antes de decolar, provavelmente não conseguiria sair do chão.

- Então, o senhor está convidado a vir tomar o chá das cinco conosco, em outra oportunidade - decidiu monocraticamente a Sra. Pope, sentando-se à mesa para comer com a família. - Sempre costuma voar por essas vizinhanças?

- Acredito que agora o farei com mais frequência - assegurou o rapaz.

Ao ouvir essas palavras, Marjorie Pope sorriu.

* * *

Dois dias depois do pouso forçado, Trafford voltou à residência dos Pope na boleia de uma caminhoneta Crossley 20/25, seguido por outro veículo idêntico com quatro trabalhadores de Droguet. Eles haviam vindo desmontar a aeronave sinistrada para levá-la para reparos nas instalações do fabricante.

- Minhas nêmesis - saudou-os o Sr. Pope quando adentraram sua propriedade rural.

Enquanto os operários desmontavam a aeronave e a embarcavam nas caminhonetas, o Sr. Pope contou um pouco das suas desventuras comerciais para Trafford.

- Imagine ser o melhor fabricante de carruagens que já existiu, e então... alguém inventar um veículo que se locomove sem cavalos! - Lamentou-se ele.

- Com todo o respeito, penso que os automóveis não foram as suas nêmesis, Sr. Pope - redarguiu Trafford. - O que talvez tenha lhe faltado é o vislumbre da oportunidade que estava se desenhando perante seus olhos.

- Você quer dizer... eu me tornar também um fabricante de carruagens sem cavalos? - Replicou o Sr. Pope com descrédito. - Não, não creio que isso teria dado certo... eu nada entendo de motores, meu jovem.

Trafford não se deu por vencido.

- Automóveis foram só o início, Sr. Pope. Agora, temos aeronaves; em breve, elas serão vendidas para particulares e famílias, da mesma forma que os automóveis o são nos dias de hoje. O meu voo na aeronave de Droguet não era somente por diversão: eu estou investindo na fábrica dele, vamos nos tornar sócios.

O Sr. Pope olhou para o jovem com novos olhos. Se ali não estava um empreendedor destinado a altos voos - com perdão do trocadilho infame - ele nunca vira um em toda a sua vida.

- Talvez pudéssemos discutir uma participação durante um jantar em família - sugeriu o Sr. Pope.

Trafford voltou-se para o andar superior da residência dos Pope, e à janela do quarto de Marjorie, viu que a jovem acompanhava atentamente a movimentação dos operários que desmontavam a aeronave no pomar. Ele acenou e a jovem correspondeu, com um sorriso.

- Um jantar em família seria bom - admitiu o rapaz.

- [10-01-2020]