O desejo


       Era em meados de um janeiro quente, chuvarento, embora. Meninada em casa, refém do tempo, sem possibilidade dos divertimentos sabidos e imaginados. Entrava já em semanas a chuva infinita e fina. De férias na fazenda, Elias se irritava dos planos demudados. Tantos projetos de correr em vadiagem pela pastaria. De resto, apenas os enfadonhos jogos de baralho e damas com primos e primas.
     Os foliões em preparativos derradeiros para cantarem São Sebastião. “Meu São Sebastião, ele é o santo milagroso, livrai da peste e guerra, livrai da guerra e a peste e todo mal contagioso”.A caixa do velho Zaca marcava o ritmo e o cavaquinho de Altino ponteava a melodia tirada na voz mansa e fervorosa do mestre Bento. As vozes enchiam a varanda de Geraldão, presidente da entidade. Três vozes, três oitavas de dar gosto.
     Um vaqueiro da fazenda passou, à tarde, avisando que o goiabame estava perdendo aos montes. Chegava dar nojo a fedentina de fruta podre. A porcada fazia a festa. Se fossem fazer doce para o São Sebastião, tinha de ser ligeiro, mesmo debaixo de chuva.
      Sá Marieta consultou a Folhinha Mariana e viu que o sol estava perto. A chuva enfraquecendo. “Talvez amanhã vamos fazer a panha das frutas para o doce”.
     Dia seguinte, os pássaros levantaram cedão e anunciaram dia de sol. Quase nem seis horas, já todo mundo de pé para aproveitar a estiada. Mesmo as crianças sem tarefa inadiável, saltaram da cama para melhor uso do brilhoso e quente dia anunciado.
     Antes mesmo do café, concertavam projetos de passeios aos arredores. Iriam ver o açude quase rebentando de tanta água. Queriam adivinhar o leito do ribeirão, sempre limpo e comportado, agora atrevido e barrento. Tinha intenção de chegarem até o Retiro do Alto, de certo que por lá perdiam-se as gigantescas e saborosas mangas espadas.
     Seguiram todos em algazarra. Menos Elias, que, indisposto, dormira até mais tarde. Nem ligou muito de não terem esperado por ele. Ouvira quando saíram, mas deixou-se ficar mais um tempo na cama, imaginando o calor gostoso do sol que enfim mostrava-se pleno.
       Dona Tiana, doceira de ofício, tradição e fama, fora chamada bem cedo para o preparo da doçaria. Trazia sempre acesos os olhos miúdos de pretume forte e um sorriso farto e demorado capaz de encher de alegria a manhã que se esparramava pelos pastos e quintais enlamaçados. Não veio só, trouxera junto a filha de doze para treze, feições puxadas às da mãe, corpo de meninota longe ainda de mulher completa em vigor e beleza.
       Elias zanzava pela casa e, quando esbarrou nas duas, sorriu para si, satisfeito. Pouco explicável. Certo que algo havia naquela mocinha que o incomodava. Sem prática nos arranjos do coração, não atinava para o que seria aquela palpitação na simples presença dela.
        A doceira enviuvara há tempos e mantinha com decência um naco de terra, contíguo à propriedade da prima Marieta. Subsistia da profissão e de plantios poucos na aba do terreiro. Criava com esmero e amor a filha única, fruto da união com o falecido marido.
      Delene aprendera com facilidade as letras, era boa de conta e sabia bordar com diligência. Pouca afeita aos interesses de crianças, sempre se mostrou em consequente precocidade. Demais adiantada em modo e pensamento de gente feita, não obstante o corpinho não seguisse o mesmo ritmo. Tímidas formas torneavam-lhe o corpo e os peitinhos empurrando sem pressa o vestido de rústico algodão.
      O sol se adiantava pelo céu. Oito e meia já seriam. Tia Marieta, em alvoroço, coordenava os trabalhos e outros tantos fazia ela mesma, que não era de ficar só no mando. Montanhas de roupas lavadas à espera de sol. Outras sujas que iam para as grandes bacias.
       Os camaradas, vaqueiros, enxadeiros, lavradores e os quantos de ofício, por ali, aproveitavam o tempo a favor para pôr ordem em tudo. Cercas a retocar, currais imundos carecendo limpeza de regra, o mato atrevido que vinha invadir caminhos e ameaçava entrar pelas casas. Pouca gente sobrara sem tarefa urgente.
      Dona Tiana foi descer os tachos e areá-los para receber os ingredientes. Muito que-fazer, preparar a lenha, ressuscitar o fogão. A prima que providenciasse alguém para buscar as goiabas.
    Quase aflita, Dona Marieta descobriu-se sem gente para mandar às goiabeiras. Apenas o Velho Chico da Piúma, que preparara a mulinha e dois balaios para a carga. Sozinho não podia. Necessitava alguém para acompanhá-lo e colher as frutas.
   Lembraram então de Elias que não seguira com os outros para as andanças.  No quarto, ele pretextava arranjar coisas na mala. Papéis à toa. Anotações que gostava de fazer quando não tinha ocupação e a cabeça inchava em pensamentos.
     Obediente, acatou a ordem da tia para seguir com seu Chico. Antes do almoço, estariam de volta.
      Foi então que se deu a explosão. Lépida e sorridente, numa sem-cerimônia de surpreender, Delene comunicou:
         - Mãe, vou com eles para andar mais ligeiro.
       Olhares significativos, quase enigmáticos trocaram as duas senhoras.             Num segundo, muitas ideias em confusão. Enfim, a aprovação da mãe e a anuência da tia.
     Seguiram para o goiabal os três. Primeiro, em silêncio, Elias, que não cabia em si. Por pouco tremia e suava em demasia. Chico da Piúma seguia indiferente puxando a mula. Delene vinha pouco atrás, desanuviada, sem dúvidas nem receios.
       O caminho encharcado era sutil armadilha. Foi na subida da cava, já chegando ao pau d’óleo umbroso e centenário, em cujo abrigo davam-se os piqueniques, justo ali, quando subiam com cuidado extremo, que Delene bem mais perto chegou de Elias. Sentia o hálito morno e ofegante da menina. Sem mais nem que, um escorregão e Delene foi ao chão. Sabido é que toda queda é cômica. Quase sempre há complemento de riso para ganhar completude. Mas, sobremodo, o rapazinho ficou sem graça e correu a acudi-la.
        Foi um ínfimo de tempo. Suficiente para sentir o suave que se mostrava nos braços aveludados e o sempre apenas adivinhado nos contornos do vestido.
    Um pouco de barro viscoso nos joelhos, limpos como possível e retomaram a caminhada. Agora, por favor do incidente, mais soltos, ridentes e falantes. Logo as goiabeiras se espraiavam.
      Em menos de hora, os dois cestos repletos de goiabas e prepararam para a volta. Seu Chico deu voz de comando para o retorno. Retomou a volta em lento passo. Cuidadoso da carga e de prejuízo ao animal.
      Então que Delene, lépida, entre dezenas, apontou um pé de goiaba. Subiu por ele e colheu uma. Elias veio em pós.
      - Experimenta! Papai falava que esta é a melhor goiaba daqui.
      - Vermelha ou branca? Quis saber ele.
      - Nem uma nem outra. É amarela. As vermelhas são areosas, as brancas seu tanto aguadas. As amarelas são a perfeição. Demasia em doce e maciez. Quase um creme!
      Delene explicava com desenvoltura e estendia a ele a fruta exaltada. Talvez que os dois nem percebessem, mas a cena tinha muito do Éden. Na oferenda da fruta, a mocinha se insinuava inteira e Elias mordeu solenemente a goiaba como se tocando os lábios dela que sugerissem um beijo suspenso no ar à procura do complemento de outra boca que o acolhesse.
        Um nada durou aquilo. Minuto de eternidade, para selar de vez o mútuo interesse. Elias quis tomá-la a si. Um gesto decidido e por pouco começado. Outra vez, surpreendente, como num jogo estudado e risco bem medido, Delene correu de novo ao pé e apanhou mais três goiabas.
       - Vou levar estas para mamãe e tia Marieta. Vamos ligeiro que Seu Chico vai longe.
      Elias por quase desistia de entender a menina. Assaz vexado, incerto já da possibilidade. O desejo sobregrande e crescível do então suspenso beijo. Estivera tão próximo. E tudo desandara.
    Ela por seu lado seguia sem grilo algum. Nada que lhe anuviasse o pensamento.
      Podia ser parte do jogo. Ou mesmo defesa de algum atrevimento. Esses meninos de cidade são sempre aproveitadores. A mãe já teria alertado. Contudo, nem isso era. Ia espontânea, bem pertinho dele e apontando novidades ora nas copas das árvores, ora pelas beiras de caminho.
    Na cava do pau d’óleo, a menina suada, parou à sombra e estacou-se junto ao gigantesco tronco. Imóvel como uma estátua ou bruxa de pano. Elias, a dois ou três metros, ficou olhando-a sem que-dizer. Então, Delene ensaiou um sorriso, enigmática, aprumou a cabeça, colou-se mais ainda ao tronco da árvore e disse resoluta de uma vez:
    - Se quiser, pode me dar um beijo. Um só!
   Elias tentou falar alguma coisa, palavras não foram feitas para momentos tais. Aproximou-se de Delene e, num exíguo tempo, os lábios nem bem se tocaram e o mundo virou-se em mil cambalhotas. A menina, solta e leve, corria com Elias no encalço. As risadas espantavam passarinhos em festas no arvoredo. Mesmo eles eram dois pássaros levianinhos, em cochichos e segredos pelos caminhos.
     Veio o São Sebastião. Festança de peso. Cantoria e comida farta. A noite inteira. Para Elias era tempo de despedida. Acabava-se a temporada. Repassava o ocorrido no dia das goiabas. Aquilo foi bom, embora ainda nadica de nada. Bom mesmo, o depois. Tantos encontros escondidos: no pomar, na cachoeira e aquela noite de luão em que foi bater na janela de Delene. Loucura só.
    Agora tinha de voltar para os estudos. Relembrar tudo, ruminar cada detalhe. Cantar de galo para os colegas. E nas vindouras férias, sabia de um pé de goiaba, amarelinha e tenra. Doce como um segredo bem guardado. A fruta viçosa, entumecida,  esperando por eles.


 

Fernando Antônio Belino
Enviado por Fernando Antônio Belino em 09/01/2020
Reeditado em 12/11/2023
Código do texto: T6837849
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