FELIZ ANO NOVO!
Era o último dia do ano, chovia intensamente e o vento forte virava chapéus, encharcando os transeuntes.
O homem singrava na sua rota contra a intempérie, indiferente à água que lhe ensopava a roupa, escorrendo desde o cabelo. Deu mais uns passos até que desistiu e se abrigou junto à montra de uma loja. Outras pessoas também ali se aglomeravam, tentando proteger-se da inclemência do tempo. Como se estava a molhar na mesma pois o espaço era exíguo para tanta gente, continuou a caminhar apressado, cada vez mais ensopado, até que se enfiou no que lhe pareceu um vão de escada. Depois olhou melhor e percebeu que estava à entrada de uma das muitas pensões manhosas da zona, conhecida por ser uma área de prostituição.
Uma mulher ainda jovem, morena e de feições agradáveis, estava por perto, deu-lhe o seu melhor sorriso e chegando-se para junto dele, convidou-o a subir, alegando que deveria tirar as roupas molhadas para não se constipar. Ele refletiu breves segundos e apesar de perceber o intuito da outra, acabou por concordar com os seus argumentos.
Ela deu-lhe o braço e conduziu-o até ao balcão onde, sem regatear, pagou o quarto por toda a noite.
Subiram, o aposento ficava no primeiro andar, era modesto, um armário, uma cadeira, a inevitável cama e um toucador completavam o mobiliário. Numa pequena divisão contígua estava aquilo que pomposamente chamariam de banheiro, com o mínimo indispensável: um lavatório, um bidé * e uma sanita.
Sentou-se na cama, ela aproximou-se e começou a despi-lo. Estava mesmo todo molhado. Espirrou.
- Vá, despe-te rápido, ainda te vais constipar. Ajudou-o a tirar as últimas peças de roupa e depois de lhe esfregar energicamente o corpo com uma toalha que vira dependurada num canto, pois ele tiritava, meteu-o debaixo dos lençóis, cuja limpeza já vira melhores dias.
Depois de o ver bem tapado, tirou o casaco comprido e começou a despir o resto da roupa. Ele parou-a.
- Não te dispas toda.
Ela olhou-o, perplexa.
- Então, o que estás a pensar? Eu não alinho em coisas esquisitas, está bem?
- Não é nada disso, eu apenas quero sentir o calor de um corpo junto ao meu. Tenho muito frio. E também quero conversar. Anda para aqui, para perto de mim.
Ela olhou-o de novo. Não compreendia. Sempre se habituara aos modos bruscos dos clientes, a servir de alívio para os seus impulsos sexuais. Porém, ele era delicado com ela... Como perceber isso?
Parcialmente vestida, enfiou-se debaixo da roupa e o frio levou-a a chegar-se para junto dele. Sentiu o seu corpo magro tremendo. Teve pena do ente que tremia ao seu lado e chegou-se mais. Abraçou-o, tocando com a mão nas mãos geladas dele e ficaram assim, em conchinha.
Ele depressa adormeceu. Afinal nem sequer chegaram a conversar. Dormindo ao seu lado, sentiu que deveria ser mais um infeliz que o último dia do ano, muito chuvoso, apanhara desprevenido. Não tinha sono. Pensou em muitas coisas do seu passado, algumas delas de que se envergonhava. Depois sacudiu essas tristes lembranças. Passado algum tempo, sentiu uma estranha paz dentro de si e aconchegou-se mais a ele. Ouviu o seu sono pesado, ressonava um pouco. Mas não era como tantos outros que depois de satisfazer a carne adormeciam como porcos. Ele parecera-lhe diferente, educado e no fundo um ser frágil, tocando o seu coração de mulher.
Sentiu os foguetes lá fora a estalar, iluminavam de forma rasgada a parede em frente à janela. Noutra altura, ter-se-ia levantado e ido espreitar as cores reluzentes no céu escuro. Desde miúda que adorava ver o fogo de artifício, mas desta vez não lhe apeteceu. Sentia-se bem ali, abraçada aquele desconhecido. Cingiu-lhe a cintura, encostou a cabeça ao seu ombro e acabou por adormecer.
Passaram-se algumas horas, a luz da aurora teimou em espreitar por entre os cortinados, acordando-a.
Agora de costas para ele, sentiu-lhe o braço à volta do corpo. Pegou no relógio de pulso que pousara na mesa de cabeceira e viu que já passava das oito horas.
Ele mexeu-se na cama, ela voltou-se e olharam-se. Depois o homem desviou-lhe uma madeixa de cabelo do rosto e sorriu-lhe. Ela deu-lhe um beijo na face e disse:
- Feliz Ano Novo, querido!
* Bidé - Objeto sanitário destinado ao banho checo.
A todas(os) as(os) amigas(os) Recantistas desejo, de coração, que o Ano Novo lhes traga a concretização de todos os seus desejos e esperanças sempre presentes na vida.
Que a felicidade vos toque com intensidade.
Abraço afeituoso para todos vós.
Ferreira Estêvão