PALAVRAS NÃO AMAM NINGUÉM
No desespero de tentar escrever, ele recorda as palavras para colocá-las em uma ordem que faça algum sentido, mesmo que subjetivo. Ele não quer nada descarado, nada jogado à força na cara daquele que irá ler, ou na cara dela.
Usava como filosofia de vida as letras e as mulheres, e, se por acaso ele quisesse esquecer de algum afeto, bastaria transformá-lo em literatura. Nem sempre funcionava, mas como os hábitos são coisas difíceis de desaparecer, os mantinha sempre sem reclamar.
A máquina de escrever, com as suas fitas de tinta já muito gastas, os papéis cada vez mais raros de se achar na casa velha, a luz pouca, os insetos muitos... Nem tudo estava favorável para uma boa escrita, mas ele não se importava, queria escrever para poder tirar aquela imagem da sua imaginação.
Quase podia sentir suas respirações ofegantes, poderia ver seus rostos em meio a toda a luxúria. Isso o corrompia. Mesmo não estando mais com ela, mesmo todos esses sentimentos não fazendo mais sentido, ele sentia essa total necessidade de escrever. Pensou em começar a falar do amor, dos carinhos trocados, das noites perfeitas, dos gestos de extremo afeto que ambos trocaram em todos esses anos de relacionamento. Entretanto, não. Não é sobre todo esse rebuliço; é sobre seu 'eu' seguir o caminho 'bem' sem ela. Simples, infantil e verdadeiro.
O que corrompia suas ideias eram os gritos espalhados pela casa, ecos imaginários, que as paredes devolviam a cada fim de frase. Os móveis sendo retirados pouco a pouco emulavam uma morte lenta. Transpunha de suas revoltas cada palavra amiga dita e as devolvia em forma de diversos sopros de agonia. Cansado de conselhos como "tudo ficará bem", cansado de mergulhar dentro de si para melhor estar... Acabou se afogando. As dores que se acumulavam em seu peito transbordavam nos papéis da máquina de escrever, ignorando o vento forte que balançava a cortina do quarto, ignorando o frio incessante, ignorando as lágrimas misturadas com goles de bourbon.
Escrevia sem parar, como se algum moleque mensageiro o esperasse na porta para uma derradeira entrega. Nem os erros corrigidos a caneta o impediam de seguir seu martírio de palavras. A cada ferida que lembrava, descontava sua raiva nas pobres teclas. Cansava de desembaralhar as letras nas batidas. Sentia que, se tudo não fosse dito naquele instante, iria se perder, como tanto já se perdeu. Pensava que o que iria fazê-lo parar seriam as mãos já mortas. Por fim, percebeu que aquela sede de palavras antes nunca ditas foi sumindo, dando lugar ao choro de um coração machucado.
Ele jamais mostraria a ela tudo o que escreveu, nem mesmo uma linha. Poderiam pertencer a qualquer um que desfizesse de dez reais para ler os lamentos, mas não a ela. Nunca a ela. Metade do que existia se foi na noite da descoberta. Uma traição tão clichê como tantas outras. A outra metade se perdeu no dia da mudança, deixando-o sozinho como nunca esteve, apenas sua mesa bamba com um itinerário de Minas como calço e uma máquina de escrever em cima.
Como ele iria ficar era impossível saber. O que fazer com um passado perdido? O que fazer com uma vida cheia de nada? Quanto tempo até essa incessante dor passar? Ele, como sempre ansioso, sofria por algo que não tinha agora, paz, e esperava um acalanto para si, pois a dor de perder alguém era algo sufocante. Por hora, terminaria seu whisky para amanhã retomar sua vida, com novas cicatrizes que eram só suas, e novas histórias presas em si, mas para o mundo ler.