A vida muda num instante
A vida é muito curta! Passar esse momento
de forma vil seria um desperdício.
William Shakespeare
Sábado, 1º de julho. Ceciliana acende a lareira e abranda os primeiros frios do inverno. Serve um cálice de vinho tinto e o entrega a Alberto, que está lendo o livro de Martin Gilbert, A Segunda Guerra Mundial – Os 2.174 dias que mudaram o mundo.
Ela adora mimar o seu príncipe, que tem manias e hábitos seletivos e não esconde a paixão que sente pela mulher amada.
Naquela noite decidem não jantar fora. Nada de restaurantes e badalações. Em casa é como estar dentro de um círculo de proteção e segurança. Combinam comemorar a dois o aniversário dos trinta anos de casamento, já que os filhos estão no exterior. Alberto só quer esquecer as atribulações do trabalho, que não o poupam nem aos finais de semana.
A harmonia do jazz e o contraste da luz difusa dão o clima intimista na casa. Ceciliana sai do banho, observa o marido pensativo (sempre com aquela ruga na testa), o cálice na mão, e vê o livro fechado no braço do sofá.
De vestido longo, os cabelos soltos sobre os ombros, ela olha para o marido como quem espera aprovação. Abre um sorriso, ensaia alguns passos de dança, aproxima-se e beija o amado. Ele sorri na secreta cumplicidade. Antes de desaparecer da sala, ela ainda dirige um olhar provocante, pisca um olho, atira beijos e segue feliz...
A arte de cozinhar não é a sua especialidade, mas sabe apreciar o requinte. Conhece as preferências culinárias de Alberto. Cozinhar é um gesto de amor, que gosta de externar à família, em meio à intensa atividade de professora universitária. Aquela delicadeza, que agrada o companheiro de tantos anos, não tem preço. A sós, eles confabulam segredos, riem de situações pitorescas e planejam sonhos, como a viagem à Grécia no ano passado.
Ceciliana abre a geladeira, onde o prato de frango grelhado, com molho de mostarda e champignon, está quase pronto. Pega com as duas mãos a travessa e leva ao forno. Confere a toalha branca de renda, os guardanapos, os talheres, o vinho, os cálices, tudo organizado à mesa. Sorri para si mesma, relembrando cenas de outros jantares com Alberto.
Acabara de ganhar um prêmio na universidade. Mãe de dois filhos extraordinários e três netos. A carreira bem-sucedida e um companheiro maravilhoso, com quem compartilha todos os momentos. O que mais ela pode exigir? Tem saudades da filha, que mora na França, mas logo vão estar juntas. Reduz as aulas na faculdade para dispor de mais tempo e curtir a vida. Alberto também promete desacelerar no consultório.
Ceciliana dá os últimos retoques no jantar. O marido questiona sobre passagens do livro e lamenta que a humanidade nunca aprenda, fazendo correlações com a Guerra na Síria. O conflito já tem oito anos, enquanto o mundo silencia.
Ela acende as velas. Termina de ajustar os talheres e dá a última olhada na mesa, que está perfeita. Nesse momento, não percebe quando ele para de falar...
Animada, volta-se para o marido, que está com a cabeça pendente sobre o peito. Ela o repreende carinhosamente por estar tão sonolento. Passa a mão por seus cabelos e toca-lhe o braço para despertá-lo. O cálice cai de sua mão e o líquido vermelho derrama-se sobre o sofá...
A vida muda num instante.