No limiar da visão
“O voar não vem da asa”.
Mia Couto
Estava empoleirado como um pombo em cima do pé de manga. Toda a minha atenção voltada para Ana. Ela permanecia deitada sobre uma esteira tomando o cálido sol da manhã. Eu podia ver nitidamente as variações de cor na pele dela. O sol matutino deslizando sobre a pele oleosa como uma camada de manteiga sobre um pão morno. Eu teria pulado ao encontro dela se não fosse o espaço que nos separava e o olhar de Ricardo me dizendo não.
Quando uma tristeza cósmica começou a me sacudir e a balançar os galhos da mangueira, Ricardo planou de onde estava até o chão e disse:
-Venha ver menos...e sentir mais!
Fechando os olhos eu fui. Não queria ver nada mais que não fosse Ana. Constatei que a terra corria sob meus pés e uma paisagem suspeita passava, literalmente, voando por mim. Cruzamos como uma bala a cidade. Norte, sul, leste, oeste eram apenas palavras. Havia perdido o senso de direção. Se é que algum dia eu já tive um.
Ricardo sussurrou ao meu ouvido dizendo para eu me apoiar no que parecia ser seu ombro. Assim o fiz. Eu sempre soube que, com ou sem carro, ele era bem mais veloz que eu. Foi ele que há algum tempo nos ensinou - Ana e eu - a dirigir. Hoje, ele é mais um guia do que um instrutor.
Para onde fomos, os pastos verdes e as plantações de eucaliptos que circundavam a cidade ainda permaneciam lá. Estavam imóveis como numa fotografia. Continuavam belos para além de tudo. Também havia o fluxo dos ônibus, vans e carros de empresas que chegavam das usinas de açúcar e álcool da região. Parados no tempo e inertes no espaço ainda pudemos enxergar os trabalhadores cansados que adentravam no perímetro urbano.
Há alguns dias Ana sorria ao sairmos juntos. Ela disse que ia comigo até o fim do mundo. Quando eu falei que o mundo é redondo e que não tem fim ela levantou as sobrancelhas e falou então que iria comigo até onde eu quisesse que ela fosse. Eu balancei a cabeça sorrindo e só parei quando ela grudou minhas orelhas e sem o menor pudor deu mordidinhas em meu nariz, antes de me beijar. Mas, tudo isso passou.
Foi quando Ricardo teve a brilhante ideia de nos convidar para acelerar na pista do aeroporto rural. Se o fim tem um começo foi ali que o nosso fim começou. Nunca mais o som do sorriso de Ana escorrendo de sua boca como uma cachoeira de água límpida e doce. Nunca mais a amizade cúmplice de Ricardo ao nos ver felizes. Hoje, acredito que ele me segue para todo canto tentando me ajudar porque, no fundo, ele sabe que eu ainda não o perdoei.
Agora estou mirando o horizonte, distante, eterno e ao voltar os olhos para perto vejo os muitos caminhos que cortam a terra. Esta grande e velha terra. Simpática e bela como uma mãe boa. As rodovias, as pistas e as estradas estão inchadas de gente e veículos. Nesse momento os carros dos empregados e os veículos de carga que transportam homens e animais para os seus destinos tristes e obrigatórios, passam circundando a cidade.
Olhando triste, tenho vontade de falar para o Ricardo que, ao menos, nosso importado não mais congestionará essas vias. Ele era leve demais para o mundo. Ele carregava apenas nossas aventuras, enquanto esses carros financiados dos trabalhadores carregam o peso das obrigações.
Estávamos nessa, olhando o sol se pondo e a lua aparecendo e o sol nascendo e outro dia surgindo – como se o tempo não existisse - e todas aquelas pessoas lá, indo, vindo e retornando encapsuladas em seus veículos quando de repente, com a força de um grito, um chamado ou um pedido, não sei, ligeiro ou demoradamente algo novo aconteceu.
Ricardo ainda rodopiou com o vento em minha direção, levantou um tufo de poeira tentando encobrir minha vista, mas eu me livrei dele e da poeira gritando, pedindo e desejando o perdão dele e gritando que o perdoava também. Eu estava no limiar da visão, de alguma visão. E meus olhos se abriram, de verdade. Eu passei a ver por trás da paisagem e além dela. E vi.
Com os últimos raios do sol um carro novo e limpo chegava rápido. Dentro da cápsula de ferro, plástico e combustível, dois corações vinham selvagemente embalados pela velocidade. Um jovem casal dirigindo e praticando o ódio com as mãos. O rapaz dirigia com uma mão só. A outra empurrava, malvadamente, uma garrafa de encontro ao rosto da garota. Ela lutava para se livrar da mão dele, arranhava-lhe o rosto. Ele sorria loucamente. E continuou sorrindo mesmo depois da batida. Parou de sorrir quando olhou para o carro em chamas e a namorada caída sobre uma moita de capim. Olhou ao redor e me viu. Esboçou um princípio de risada louca que, aos poucos, foi se transformando numa careta de dor assim que viu seu próprio corpo imprensado entre o volante e o poste.
Sem saber o que fazer abaixei minha cabeça, observei as formigas cortadeiras trabalhando na grama verde-pálida. Senti que Ricardo se deslocava como uma nuvem, como água na direção do casal. Ia cumprir seu destino, sua ânsia de reconfortar. Eu sou imaturo e pesado para estas ações. Por isso, me arrastando lentamente, fui deixando os três para trás. Eu me deslocava, junto com o ar, numa outra direção. Ao me distanciar percebi que a moça também levantava e se movia para longe do rapaz que continuava colado ao solo como uma cópia de si mesmo. E pedia, suplicava com os olhos, algum tipo de perdão. Era um olhar fosco, cinza e triste.
Saindo para a amplidão do espaço eu soube que havia mais brilho nas lâmpadas dos postes, nas varandas e casas dos pobres do que nos olhos daquele rapaz. Olhando para o mundo ao redor, fui invadido por uma espécie de brilho - que começou nos olhos – e me ocupou por inteiro. Me senti como uma bola de fogo cruzando os campos, assustando os animais e rompendo a barreira do tempo.
Assim que a velocidade da chama em mim diminuiu, me vi de pé e altivo diante da janela de Ana. Ela olhava para fora, para frente e para o alto. Com uma mão ajeitava o cabelo como quando estava na minha presença. E como estava na minha presença – sem saber que estava – sorria airosamente para as estrelas no céu.