Reconciliação (O conto)
Era 1926 e a jovem Berenice era vista pelas praças com sua irmã Alice e a cadelinha Pompom. Filha do boticário, Berê, como era chamada carinhosamente pela família, no auge dos seus dezesseis anos atraía muitos olhares masculinos, os quais somente um era correspondido.
Gian, filho de imigrantes italianos era um rapaz modesto, cabelos louros um pouco avermelhados, tinha os olhos verdes como as uvas que colhiam nos terroirs da família na Toscana, em sua longínqua pátria que ficara na saudade. O rapaz era um pouco tímido mas um dia reuniu coragem e simulou um problema qualquer na sua bicicleta para acompanhar as jovens, Berenice e a pequena Alice, que iam para o colégio das irmãs.
Gian levava quitutes da confeitaria às casas nobres da cidade, inclusive para casa de Berenice, e pelas constantes visitas à casa delas, as meninas arriscavam conversar com o rapaz que por sinal era o eleito da mocinha.
Um dia Berenice conseguiu se desvencilhar da irmã e passou pela confeitaria, onde podia ver o jovem italiano se preparando para sair com as encomendas daquele dia.
Ele ficou surpreso quando a viu sorridente ao lado da bica que havia próximo à Rua do Comércio.
- Bom dia Giancarlo! Esses quitutes devem estar deliciosos!
- Eu não posso afirmar mas gostaria de vê-la provar um deles.
Ofereceu um brioche à moça que agradeceu delicadamente e sugeriu que fossem pela orla da lagoa para apreciarem o ar fresco da manhã.
Naquele dia os fregueses da confeitaria estranharam o atraso do rapaz que meio atrapalhado teve de contar a todos sobre um pneu da bicicleta que havia estourado.
Berenice também se atrasou para a aula de costura e bordado mas diante sua arte perfeita, a instrutora bausaqueana que percebeu um ar de romance na sua proeza com o ponto cruz, decidiu relevar. Somente a advertiu:
- Gian está apaixonado! Seu pai não vai gostar!
Os dias foram passando e o romance entre os jovens foi também ganhando força e entre um brioche e um quitute, o amor foi sendo tecido como a toalha no etamine que a menina preparava para o seu enxoval, pensava ela secretamente.
Os pais de Berenice eram pessoas de bem, gozavam de certa posição social na cidade praiana então decidiram convidar Gian para trabalhar na botica. Assim, a condição de Berenice e Gian estaria mais apropriada para a sociedade, que deslumbrada pelo avanço industrial, gozava de muitas regalias que o capital podia proporcionar.
Berenice e Gian estavam planejando secretamente marcar o noivado quando Juventino, o filho do Sr.Nicanor da Confeitaria, enciumado com a evolução do rapaz que via como seu concorrente, decidiu cortejar Berenice, afinal ela era a menina de tranças que ele gostava de brincar na pracinha defronte ao comércio dos seus pais. Não havia esquecido as muitas juras de amor, que lhe fizera desde a infância.
Embora Berenice recusasse à aparecer na sala, o rapaz pedia que lhe chamassem para que pudesse entregar-lhe alguma guloseima ou quitute que dizia ter pessoalmente preparado para ela.
Certa vez, a normalista estava voltando da escola quando ao dobrar a esquina foi surpreendida por Juventino.
A moça se assustou e o moço elegante lhe estendeu o braço para acompanhá-la até em casa.
Como naquele horário, Gian estaria na botica, Berê pensou que não teria algum mal aceitar a companhia.
Ela não podia imaginar, que exatamente naquele dia, Gian que havia guardado as economias de muitos meses, comprara-lhe o anel de noivado e seguia entusiasmado para encontrá-la no caminho da escola para casa.
Ao se aproximar do quarteirão onde a amada morava, pôde vê-la de braço dado com Juventino, seu rival das batalhas desde as bolinhas de gude.
O rapaz sentiu uma pontada no peito. Voltou para a rua adjacente e chorou pelo que imaginou ser uma grande traição.
Transtornado, ele não sabia como falar com Berenice e tampouco o que fazer com a jóia. Resolveu de pronto empenhar o anel e voltar para sua terra, onde seus tios estavam prosperando na cultura das uvas e na fabricação dos vinhos.
Berenice não se conformou quando seu pai comunicou o sumiço de Gian da botica, e todos souberam do desespero do rapaz quando leram seu bilhete, deixado com a cúmplice e amiga de ambos, Dona Hortência, a professora de costura e bordados.
Berenice tentou explicar para o pai o acontecido, mas a família não compreendia o que Juventino fazia de braços dados com a filha e diante a amizade das famílias, vizinhas da Rua do Comércio, fizeram de tudo para que Berenice esquecesse o italiano e se casasse com o herdeiro da Confeitaria.
Dona Hortência não se conformava. Buscou conhecer o paradeiro de Gian e escreveu-lhe muitas cartas contando o sofrimento de Berenice.
O rapaz estava irredutível e dizia trazer uma ferida irretratável no peito, causada pela cena inesquecível que vira no dia anterior à sua partida do Brasil.
Passaram se dois anos. Berenice enviou-lhe cartas com a ajuda de Hortência, porém nunca foram respondidas.
A moça tristonha se aproximava dos vinte anos e seus pais e os de Juventino decidiram que o matrimônio deveria ser preparado. Ela consentiu embora soubesse que o seu grande amor estava do outro lado do oceano que ela via todas as noites, debruçada à janela, com os olhos rasos d'água, fundir-se ao imenso véu, imaginando que um dia ele retornaria.
Gian estava trabalhando nos negócios do tio, produtor de vinhos, que começava a se espalhar pela Europa como um dos melhores produtos daquele mercado. Certa vez ao abrir as correspondências comerciais, encontrou o que dizia ser a última carta de Hortência. As linhas lhe contavam do desfecho de Berenice e o alertava, mais uma vez, que ele era o grande amor daquela moça, que fora envolvida numa armadilha e que ainda esperava por ele.
Gian ficou desconcertado. Fugiu para os vinhedos ao sudoeste da Toscana e refletiu por todo o dia.
Na manhã seguinte, comunicou ao tio que levaria o produto para o Brasil. Fez alguns contatos que já tinha imaginado e se apressou a escrever de volta, dessa vez para Berenice, pedindo que esperasse pelo seu retorno.
A moça recebeu seu bilhete e correu para casa de dona Hortência chorando de alegria. Pediu-lhe ajuda pois não sabia como lidar com aquela situação.
Dona Hortência se alegrou e em alguns meses, a história outrora desfeita, voltava com novos ares à pequena e pacata cidade ao pé dos montes. Juventino decidiu ir-se embora para São Paulo e Berenice se casou com o novo industrial vinícola, recém chegado da Itália, que se estabeleceu no Rio de Janeiro com sua amada Berê. Assim passou os dias vendo sua vida promissora se estender como a sua prole brasileira que gostava de reunir em piqueniques dominicais sobre a velha e bem conservada, toalha bordada que tinha muita história.
Cláudia Machado
Nota: Ouça na sessão Áudios, Reconciliação. A primeira parceria que fiz com Germano Ribeiro e que conta essa história.
Era 1926 e a jovem Berenice era vista pelas praças com sua irmã Alice e a cadelinha Pompom. Filha do boticário, Berê, como era chamada carinhosamente pela família, no auge dos seus dezesseis anos atraía muitos olhares masculinos, os quais somente um era correspondido.
Gian, filho de imigrantes italianos era um rapaz modesto, cabelos louros um pouco avermelhados, tinha os olhos verdes como as uvas que colhiam nos terroirs da família na Toscana, em sua longínqua pátria que ficara na saudade. O rapaz era um pouco tímido mas um dia reuniu coragem e simulou um problema qualquer na sua bicicleta para acompanhar as jovens, Berenice e a pequena Alice, que iam para o colégio das irmãs.
Gian levava quitutes da confeitaria às casas nobres da cidade, inclusive para casa de Berenice, e pelas constantes visitas à casa delas, as meninas arriscavam conversar com o rapaz que por sinal era o eleito da mocinha.
Um dia Berenice conseguiu se desvencilhar da irmã e passou pela confeitaria, onde podia ver o jovem italiano se preparando para sair com as encomendas daquele dia.
Ele ficou surpreso quando a viu sorridente ao lado da bica que havia próximo à Rua do Comércio.
- Bom dia Giancarlo! Esses quitutes devem estar deliciosos!
- Eu não posso afirmar mas gostaria de vê-la provar um deles.
Ofereceu um brioche à moça que agradeceu delicadamente e sugeriu que fossem pela orla da lagoa para apreciarem o ar fresco da manhã.
Naquele dia os fregueses da confeitaria estranharam o atraso do rapaz que meio atrapalhado teve de contar a todos sobre um pneu da bicicleta que havia estourado.
Berenice também se atrasou para a aula de costura e bordado mas diante sua arte perfeita, a instrutora bausaqueana que percebeu um ar de romance na sua proeza com o ponto cruz, decidiu relevar. Somente a advertiu:
- Gian está apaixonado! Seu pai não vai gostar!
Os dias foram passando e o romance entre os jovens foi também ganhando força e entre um brioche e um quitute, o amor foi sendo tecido como a toalha no etamine que a menina preparava para o seu enxoval, pensava ela secretamente.
Os pais de Berenice eram pessoas de bem, gozavam de certa posição social na cidade praiana então decidiram convidar Gian para trabalhar na botica. Assim, a condição de Berenice e Gian estaria mais apropriada para a sociedade, que deslumbrada pelo avanço industrial, gozava de muitas regalias que o capital podia proporcionar.
Berenice e Gian estavam planejando secretamente marcar o noivado quando Juventino, o filho do Sr.Nicanor da Confeitaria, enciumado com a evolução do rapaz que via como seu concorrente, decidiu cortejar Berenice, afinal ela era a menina de tranças que ele gostava de brincar na pracinha defronte ao comércio dos seus pais. Não havia esquecido as muitas juras de amor, que lhe fizera desde a infância.
Embora Berenice recusasse à aparecer na sala, o rapaz pedia que lhe chamassem para que pudesse entregar-lhe alguma guloseima ou quitute que dizia ter pessoalmente preparado para ela.
Certa vez, a normalista estava voltando da escola quando ao dobrar a esquina foi surpreendida por Juventino.
A moça se assustou e o moço elegante lhe estendeu o braço para acompanhá-la até em casa.
Como naquele horário, Gian estaria na botica, Berê pensou que não teria algum mal aceitar a companhia.
Ela não podia imaginar, que exatamente naquele dia, Gian que havia guardado as economias de muitos meses, comprara-lhe o anel de noivado e seguia entusiasmado para encontrá-la no caminho da escola para casa.
Ao se aproximar do quarteirão onde a amada morava, pôde vê-la de braço dado com Juventino, seu rival das batalhas desde as bolinhas de gude.
O rapaz sentiu uma pontada no peito. Voltou para a rua adjacente e chorou pelo que imaginou ser uma grande traição.
Transtornado, ele não sabia como falar com Berenice e tampouco o que fazer com a jóia. Resolveu de pronto empenhar o anel e voltar para sua terra, onde seus tios estavam prosperando na cultura das uvas e na fabricação dos vinhos.
Berenice não se conformou quando seu pai comunicou o sumiço de Gian da botica, e todos souberam do desespero do rapaz quando leram seu bilhete, deixado com a cúmplice e amiga de ambos, Dona Hortência, a professora de costura e bordados.
Berenice tentou explicar para o pai o acontecido, mas a família não compreendia o que Juventino fazia de braços dados com a filha e diante a amizade das famílias, vizinhas da Rua do Comércio, fizeram de tudo para que Berenice esquecesse o italiano e se casasse com o herdeiro da Confeitaria.
Dona Hortência não se conformava. Buscou conhecer o paradeiro de Gian e escreveu-lhe muitas cartas contando o sofrimento de Berenice.
O rapaz estava irredutível e dizia trazer uma ferida irretratável no peito, causada pela cena inesquecível que vira no dia anterior à sua partida do Brasil.
Passaram se dois anos. Berenice enviou-lhe cartas com a ajuda de Hortência, porém nunca foram respondidas.
A moça tristonha se aproximava dos vinte anos e seus pais e os de Juventino decidiram que o matrimônio deveria ser preparado. Ela consentiu embora soubesse que o seu grande amor estava do outro lado do oceano que ela via todas as noites, debruçada à janela, com os olhos rasos d'água, fundir-se ao imenso véu, imaginando que um dia ele retornaria.
Gian estava trabalhando nos negócios do tio, produtor de vinhos, que começava a se espalhar pela Europa como um dos melhores produtos daquele mercado. Certa vez ao abrir as correspondências comerciais, encontrou o que dizia ser a última carta de Hortência. As linhas lhe contavam do desfecho de Berenice e o alertava, mais uma vez, que ele era o grande amor daquela moça, que fora envolvida numa armadilha e que ainda esperava por ele.
Gian ficou desconcertado. Fugiu para os vinhedos ao sudoeste da Toscana e refletiu por todo o dia.
Na manhã seguinte, comunicou ao tio que levaria o produto para o Brasil. Fez alguns contatos que já tinha imaginado e se apressou a escrever de volta, dessa vez para Berenice, pedindo que esperasse pelo seu retorno.
A moça recebeu seu bilhete e correu para casa de dona Hortência chorando de alegria. Pediu-lhe ajuda pois não sabia como lidar com aquela situação.
Dona Hortência se alegrou e em alguns meses, a história outrora desfeita, voltava com novos ares à pequena e pacata cidade ao pé dos montes. Juventino decidiu ir-se embora para São Paulo e Berenice se casou com o novo industrial vinícola, recém chegado da Itália, que se estabeleceu no Rio de Janeiro com sua amada Berê. Assim passou os dias vendo sua vida promissora se estender como a sua prole brasileira que gostava de reunir em piqueniques dominicais sobre a velha e bem conservada, toalha bordada que tinha muita história.
Cláudia Machado
Nota: Ouça na sessão Áudios, Reconciliação. A primeira parceria que fiz com Germano Ribeiro e que conta essa história.