Com amor, Freud.
Não sei a hora ao certo quando o cão correu até ao imenso portão de grossas e frias barras de ferro e começara a latir. A sombra que acabara de chegar e estava em frente a ela, se abaixou a frente do pequeno demônio com seus dentes afiados e a boca salivando.
- Oi amigão, veio me receber de novo.
A estranha figura fez carinho no pescoço da fera que logo se acalmou e agora abanava o rabo. Da cabine ao lado do portão saiu um jovem franzino com uma lanterna, casaco grande e pesado sobre os ombros e com um jeito desengonçado de quem tinha sido acordado de um cochilo.
- Quem é? O que você quer? O horário de visitas já acabou.
Gritara o jovem com a lanterna apontando para a cara do estranho vulto que sobre a luz, parecia ser um senhor de meia idade. Logo atrás do jovem vinha se arrastando um outro senhor, esse baixo, careca e já barrigudo. Vestia também um grosso casaco, pois aquelas horas tarde da madrugada, o frio era intenso. Ainda mais naquele lugar onde tudo parecia ser tão gelado.
- Pare com essa gritaria, Tomás. - Disse o velho para o garoto.
É só um velho amigo querendo fazer uma visita a sua esposa. -Acrescentou ao mesmo tempo que tirava o cadeado e as correntes do portão. - E aí Freud, sempre no mesmo horário, né?
- Pois é. Sabe que evito visitas quando aqui está cheio. - Respondeu o senhor de meia idade, enquanto entrava.
- Trouxe até flores dessa vez.
- Sim, ano passado eu as esqueci. Ela ama margaridas, da última vez ela ficou muito brava por ter esquecido.
O barrigudo deu uma gargalhada de leve, ao passo que batia no ombro do visitante como quem diz, eu também ficaria. O jovem que observava tudo, ficava sem entender aquela conversa e impaciente querendo voltar para a guarida e continuar sua soneca.
- Bom, vou me encontrar com ela.
- Fique a vontade, meu velho amigo. Você já sabe onde encontra-la.
Freud deu um passo a frente, mas logo voltou virando-se para os dois.
- Já ia esquecendo. Trouxe um presente para você também.
E, retirando de umas das sacolas de plástico que carregava, pegou uma bela garrafa de Whisky.
- Como está frio, imaginei que iriam gostar de se aquecerem.
- Você sabe como me agradar. - Disse o guardião, batendo em sua tão notável barriga. Silvio era um homem que trabalhava por ali havia anos. Conhecia quem entrava e saia, quem dava dores de cabeças e quem não. Mulherengo, observador e um bom ouvinte, a amizade com Freud era de longa data. Se acostumara com suas visitas sempre no mesmo dia, sempre as altas horas da noite. Mas o que sempre ele gostava era que o amigo não era muito de falar e sempre lhe trazia um presente. E, o presente, era sempre uma garrafa alcoólica de algum importado.
- Fique a vontade, enquanto eu saboreio essa delicia. Quando terminar, provavelmente estarei bêbado e roncando. O Tomás abrirá o portão para você sair.
Freud fez um sinal com os dedos como se prestasse continência, mostrando que tinha entendido o recado e prestou a caminhar. Se distanciara da entrada, passando por um patio oval. Entre vários acessos que o patio tinha, seguiu em frente. O lugar era silencioso, não só por ser tarde da noite, pois mesmo de dia, não se ouvia muita gente falando. O que mais se ouvia era soluços de choro e o barulho do vento nas folhas e galhos das árvores.
Ele continuara e parecia que o frio aumentava. Apertou o casaco contra o corpo com a mão direita enquanto a outra, tentava segurar os sacos e coloca-la no bolso. Um malabarismo um pouco difícil. Após uma pequena caminhada, virou a esquerda e prosseguiu, porém dali em diante a estrada era de terra. Seus sapatos ficavam cada vez mais sujos de lama, a chuva do dia anterior misturada com o barro realmente dificultava o processo. Mas ele continuava entre um atolamento e outro, entre um quase escorregam e outro.
Finalmente chegara. Deu um suspiro de cansaço ou talvez fora a euforia de encontrar alguém que não via a tanto tempo e que deixa qualquer um com saudades.
- Olá querida, feliz aniversário de casamento. Desculpe vir tão tarde, você me conhece. Muito trabalho. Na verdade, passo a maior parte do meu tempo no escritório.
Fizera uma pausa. Tudo que se ouvia era uma ventania que ao passar pelos dedos das arvores, o fazia assobiar.
- Sim, sim, estou me alimentando bem. Como assim emagreci?
Está redondamente enganada. Me pesei ontem. Você não muda, não é?
Sempre muito preocupada comigo. Ah, já ia me esquecendo. Te trouxe flores dessa vez. Margaridas, sei como você as ama. - A respondera com um sorriso meio a boca, estendendo o boque para a frente após cheira-lo.
Ele se inclinou e as colocou no chão. Depois, mexeu nas sacolas e tirou uma garrafa de vinho e duas taças. As apoiou sobre uma mesa de pedra de mármore ao lado e as encheu até a metade. Entregou uma para sua amada e segurou a outra. Com um simples movimento cuidadoso, brindou sua taça na dela.
- Feliz aniversário, meu amor...
As sacolas caíram no solo lamacento e ele usou a mão livre para limpar as lágrimas que escorriam do seu rosto.
- ...você não sabe como sinto sua falta. Como tem sido difícil respirar sem ti aqui comigo. Como a vida parece que perdeu os sentidos. Como eu queria te ter aqui para te abraçar e dizer o quanto te amo.
Enquanto essas palavras eram abafadas pelo choro e lançadas no ar quase silencioso, o pobre homem de meia idade se via ali sozinho, contemplando o túmulo de seu amor.
Na cripta a frente, estavam cravados, Melissa, a data de nascimento e morte da mulher e a mesma frase que um dia ele escrevera num guardanapo sujo, de um restaurante de estrada, numa noite chuvosa que os dois acidentalmente pararam para comer porque o carro havia quebrado e eles foram obrigados a esperarem o reboque: "Meu amor por ti deve ser de outra vida e se você partir, juro que não amarei outra, beijarei outra, me casarei com outra até o dia que a morte vier me buscar e me levar de volta para teus braços novamente. Com amor, seu eterno marido Freud".