O peso do ultimo verão
Mais uma manhã de olhos pesados, a perda do amor no último verão, ainda me doía. Hora de levantar, “não fomos feitos para viver na horizontal”. A empregada já havia preparado meu desjejum, ovos e leite à vontade, a expressão mais fiel da força do homem bucólico.
Tudo parece muito insosso debaixo de pálpebras tomadas pela moléstia, os ombros estão pesados e pendem já mórbidos, nos ouvidos o tic-tac arrastado do relógio pendurado na parede. Mordo alguns pedaços, penso um pouco enquanto a comida ainda ruminava, “devia estar perto do meio dia, onde está o resto de meu povo? Tinha dois filhos: um menino e uma menina; onde estão essas pilantrinhas?” Não me importo o bastante para procurar, concentro-me nos bocados e a vida há de dar um jeito neles.
Após o término de mais uma refeição, hora de ir à sala, sentir o cheiro da poeira e ouvir o anúncio da alvorada pelo canto dos pássaros. Sento na poltrona e afundo até o ponto que me devia, na mesinha de centro a lembrança do que foi uma tarde agradável me sorria: um casal, seus filhos, e alguns furtivos raios de sol que pela relva reluzia. Pego em minhas mãos, ainda é possível ouvir o ecoar das gargalhadas, o perfume das flores e o reflexo da amada; estou muito fraco e a felicidade demasiada pesada, o retrato pelos dedos me escapa junto a duas ou três lágrimas, deixo-o no chão em cacos, não aguentaria a responsabilidade de alça-lo, pego meu cachimbo e vou à varanda com passos ainda mais arrastados.
O dia está bonito e a através dos pitos posso ver passar o tempo. Alguns metros dali, em nosso espaçoso quintal, vejo minhas crias, brincando, pulando, jogando, como se procurassem fazer desistir o tempo de pega-los pelas orelhas e dar umas daquelas sacudelas que só o grande mestre sabe dar. Acho que estamos no outono, seu marasmo sempre faz-me perder os meses, não sei se março ou maio, mas lembro que o cheiro dela me escapou em fevereiro; esse assunto me é zombeteiro e nem o alcatrão consegue afasta-lo.
Os olhos estão ainda mais pesados não faço resistência e deixo-os fechar. O mundo onírico há muito que não me lisonjeias com suas belas imagens, o sono se faz profundo, pelo menos nas escuras catacumbas os escaravelhos não conseguem entrar. No mais pleno escuro vazio consigo me sentir completo, horas perdidas que não podiam ser melhor aproveitadas.
O barulho de um trovão me acorda de repente, as crianças já haviam entrado, parecia eu já não ser necessário. Entro e peço para que a empregada me sirva um belo copo de whisky, minhas pernas doem e a alma pede, “sem gelo!” para que não me atrapalhe nas goladas.
Inicia a chuva, o cheiro da terra molhada inunda a casa de moveis velhos e cheio traças. A muito tempo que não recebo um tostão, e apenas de moradia e pedidos de perdão tenho pago a empregada. Penso que as crianças cansaram, pois apenas o silêncio me fazia sala; no telhado as gotas tamborilavam uma sinfonia dessas que você tem na cabeça, mas a língua trapaceia e não sai nada.
Entro no quarto, que costumava ser nosso e agora é meu, olho para cama e essa me repulsa como se estivesse de mim cansada. Sento na poltrona e pego um livro na estante à vontade dos próprios dedos. “Que maravilha, poesia!” Folheio-as como alguém que procura algo, já que imputavam, os grandes sábios, a sabedoria aos poetas; não encontro nem mesmo verso para que responda à pergunta que eu não tinha. Fecho o livro aborrecido. Olho para a cama e está me devolve o olhar com a mesma repulsa de outrora.
Deve ser um sinal, “não fomos feitos para viver na horizontal”. Uma ideia cai na cabeça feito uma bomba ao solo, destruidora e única. Vou ao porão e pego uma corda. Enlacei, preparei um banquinho a meio palmo. Hoje não irei deitar-me para descansar, pela primeira vez retomo a leveza ao ponto dos pés não tocarem o chão.