Divórcio
Ele sentiu um frio, foi algo rápido, instantâneo, ele estava lá olhando pela janela, seus olhos seguiam as pedras de granizo, ou tentava segui-las, eram muitas, aos poucos o jardim ia virando um imenso mar de gelo, as pedras se acumulavam, formavam montes, não eram muito grandes, porém, o que assustava era a quantidade.
- Jorge, será que o telhado vai aguentar?
- Ele é novo. Vai sim.
- Da última vez que você falou isso deu ruim.
- Aquilo foi antes de eu trocar as telhas.
Era uma conversa supérflua. Simples em sua essência, porém, era valiosa, porque era uma das últimas que tiveram. Representaria muita coisa para ambos depois. Era uma imagem rápida, totalmente enquadrável numa cena, daria pra repetir várias vezes, ver cada detalhe ali exposto, o granizo, os olhos, as roupas de frio, o barulho no telhado, o cheiro do café que há pouco tempo tinha sido coado, tudo se misturava, ganhava sentido, coisas para remoer para o resto da vida, isso se associa com isso e isso, sentimentos, culpa, desejo, tudo ali, naquele instante. E o amor, amor que não volta, só fica guardado na memória, sem o tato, sem os corpos. Era uma espécie de morte que não terminava nunca.Talvez um castigo divino, uma punição, um inferno na sua mente.
O relacionamento dele com Deus era ruim. Ia pouco na igreja. Se fosse uma vez no mês seria muito, ia só quando sua tia chamava, só que ele também via pouco a tia, ia na casa dela só quando se lembrava que ainda tinha uma família, ficava mais em casa mesmo, cultivando a própria solidão. Quase nunca antes tinha esse tipo de momento, até reclamava de vez em quando para si mesmo, queria um tempo para si, só nunca imaginou que realmente teria e que seria assim, desse jeito, tão monótono e chato. Os jogos não lhe agradavam mais, nem os filmes, nem os livros. Deu uma de escritor uns dias, escreveu bastante, estava quase terminando a história, aí resolver leu, viu que não era tudo aquilo que imaginava, os erros se juntavam em montes, olhavam para ele, gritavam de dor, daí ele apagou tudo e nem quis mais saber de escrever.
Dia, dia, dia, que dia mais chato! Acordava de manhã: sol no seu rosto. O sol poderia explodir. Ninguém ia ligar, pode chover fogo, daí ele iria lá fora, iria querer ser o primeiro a virar lenha. Levanta, levanta, levanta, escova os dentes, olha o rosto semi-morto no espelho, tanta olheira, parece que levou dois soco, um em cada olho. Toma banho, veste terno e coloca o óculos. Hoje é o grande dia, dia de ir no Forum resolver o divórcio. Tem que se arrumar pra entrar lá dentro, não devem aceitar mendigos. E ela vai estar lá, sabia que ia julgar ele, ia julgar ele com aqueles olhos verdes, aqueles olhos verdes e malvados, acusadores, iam sentir raiva dele e se tivesse sorte: pena.
Abriu a porta do lugar, passou pelos seguranças, eram negros, altos, fortes, podiam dar uma surra fácil nele se quisesse, tinha que se comportar bem, ser um exemplo de etiqueta, ter o controle que todo homem precisa ter para ser um homem. Outra porta, o pessoal lá dentro, uma plateia de três pessoas, alguns amigos que ficaram do lado dela, e ela lá na frente, do lado do advogado babaca. Um maldito engomadinho.
- Você está atrasado, senhor Jorge. - anunciou o meritíssimo.
- O trânsito. Ele tava de matar. - respondeu e se sentou ao lado daquele que prometera conseguir pelo menos um filho.
- Vai dar tudo certo, okay?
- Espero.
Era um desânimo total. Toda aquela burocracia, aquele bla bla bla de juiz, de advogado, de justiça. Era tudo muito simples e eles só queriam complicar. Dois filhos: um fica com o pai e outro com a mãe. Qual o problema em dividir? Ninguém ia ficar sozinho. Já eram grandes, a garota e o garoto. Não precisavam de leite da mãe. O garoto tinha 8 e a garota 11. Podiam eles mesmo escolher. Só que não, a mãe queria tudo. Naquele momento nem os filhos tinham vozes. Ela ficava com o nariz empinado e não queria nem saber de outra possibilidade. Só ela sabe cuidar dos filhos. Só ela sabe o que é melhor para eles. O pai não, o pai é um mentiroso safado. Ele arruinou com nosso casamento. Estragou a relação de fodendo 15 anos, só ele que estragou, eu não tenho culpa, eu não, só ele, ele que é o culpado de tudo de ruim que aconteceu na minha vida nos últimos tempos. Agora vou chorar aqui pra mostrar o quão vítima eu sou ao mesmo tempo disfarçando o fato de eu ter traído ele.
- Decidido. A mãe fica com os dois filhos.
- Oi?
- Eu tentei, Jorge… Eu tentei….
- Tentou pouco.
E ele se levanta, os olhos baixos, contando os passos, não queria ver o rosto dela, não depois dessa decisão, ela não podia ver o vazio de seus olhos, o peso da decisão que ela tomara, por mais que ela era a errada ali, não queria que ela sentisse culpa, aquela era a mulher que iria criar os seus filhos, ela tinha que ser forte, ser forte para os filhos serem fortes também, porque é só isso que importa: eles. A relação dos dois finalmente tinha acabado. Pelo menos no oficial. 15 anos caíram ali feito chuva no bueiro.
Lá fora, ela teve a audácia de parar ele, segundos antes de entrar no táxi.
- Foi melhor assim, Jorge.
- Foi? Pra quem?
- Para as crianças.
- Sim. Foi. Você sabe que foi.
Ele se vira e entra no taxi.
- Queria que fizesse o quê depois daquilo que você fez?
- E o quê você fez? Não conta?
Tudo bem, o quê eu fiz foi errado, Jorge. Eu realmente te traí. Mas você não precisava ter batido nele, não daquele jeito pelo menos. Olha o jeito que você deixou ele, tá todo arrebentado. Você foi um idiota.
Fui, fui e não me arrependo. Se eu pudesse faria tudo de volta. Aquele cara que era um idiota. Alice, ele era meu amigo, você tem noção disso? Você ficou com meu amigo. Isso não se faz, cara. Ah, quer saber? Foda-se isso. Eu não ligo mais pra você, nem pra ele. A única coisa que me importa de verdade são meus filhos e agora nem isso eu tenho mais.
- Você ainda tem eles, Jorge. Não vou tirar o direito de você ver eles.
- Que bom. Você é realmente muito generosa.
Bate a porta.
- Pode ir, motorista. Já acabei aqui.
- Jorge…
E ele se foi, se foi para nunca mais voltar. Há poucos quilômetros de casa o motorista foi fazer uma curva, não viu o outro carro que vinha, deu de frente, o motorista não sofreu sequer um arranhão, estava com o cinto de segurança, já o passageiro atrás, saiu voando, bateu com a testa no vidro e o pescoço quebrou. Foi um simples “trec” e ele não estava mais no mundo. No enterro lá estava sua mulher e dois filhos. Ela chorava muito, eles não entendiam direito. Papai não estava no caixão, não podia ser ele. Nos conte a verdade, mamãe! Nos conte! Papai se foi, se foi para todo o sempre. Seu lugar agora era outro, habitava a mente da mulher, um fantasma que vai e volta, que sai e nunca sai, ele estava lá o tempo todo, nos sonhos de Alice, nos pensamentos de Alice, nos momentos de descontração de Alice, seu ex marido nunca esteve tão presente em sua vida quanto agora, eles eram mais íntimos do que jamais foram, cada cena, cada momento, cada beijo, cada decisão, estava tudo lá, misturado, nas esquinas da vida tudo parecia uma ilusão. A única dose de verdade que tinha eram os filhos. Só que ela olhava para eles e via ele.