NO DIVÃ II
Ela entrou fechada:
- Olá! Sente-se.
- Odeio ele!
- Bom… pelo visto…
- Ah! Deixa eu falar logo: eu não suporto ele! Simplesmente não suporto. Como ele pode ser tão insensível? E nossos filhos? Tratou-os como…
- Eh... como?
- Não sei. Ele elogiava muito os dos outros. Era um bom pai. Cuidava bem dos nossos, mas era muito subserviente. Ingênuo. Acreditava demais na bondade alheia. Ele não tem a malícia necessária pra viver. Ainda mais comigo. Banana.
- Tá. Mas você está se referindo a ele, certo?
- É claro! Quem mais seria? Ele falou uma coisa do filho de uma pessoa me irritou tanto: "quem dera fossem irmãos. Quem dera". Quem dera uma pinóia! Ele não me valoriza! Não valoriza o que eu lhe dei! Suspeito até que tenha me traído! Aquele sujo inescrupuloso crápula mal caráter sem caráter ignorante déspota sem coração…
- Ei! Ei! Tudo bem! Se acalme! Por favor! Sei que você tem muito a dizer, mas do jeito que está falando dificulta até pra escrever. Eu teria que pôr um hífen em tudo isso.
- Desculpe! Minhas expectativas eram tão altas. Como ele mudou tão rápido? Embora já imaginava que sempre fora assim… mas nunca quis acreditar! Que ódio! Ódio mortal! Estou como Mário de Andrade: "Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio e mais ódio!".
- E os filhos? Como estão depois do ocorrido?
- Sofrendo. E muito. Eles não tem culpa. Eu até tento cuidar deles, mas não estão acostumados com apenas um. Sempre foi dois.
- Você os ama?
- Que pergunta mais imbecil, hein?! Eles saíram de mim! Como não os amaria?
- Você os ama?
- Olha... amo.
- Você os ama?
(Ela suspirou e lágrimas escorreram)
- Amo. Mas não tenho demonstrado afeto como eles merecem. Estou tão confusa. Sempre que olho pra eles… vejo ele. ELE. ELES SÃO A CARA DELE!
- Tem lenço aí ao lado. Eh... não precisa se levantar. Eu pego. É normal. As coisas caem da mesa mesmo. O que eles falam dele?
- O de sempre: "Ele vai voltar?". Tento conforma-los.
- Você pensa nele?
- Miseravelmente sim.
- Com que frequência?
- De vez em quando.
- Dê-me um exemplo.
- De vez em quando eu acordo, quando eu respiro, quando eu vou dormir. Sempre de vez em quando. E o que me mata é esse QUANDO.
- Sente falta?
- Muita. (Choro). Muita. Muita. Muita.
- Vocês ainda se falam?
- A última vez que nos vimos foi quando ele me entregou nossos filhos.
- Por que vocês se separaram?
- Ele era um amor. Cuidava muito bem de mim. Acho que ele parou de cultivar. Tudo nessa vida é cultivo.
- Fale sobre esse cultivo. Onde ele falhou?
- Teve uma noite que ele queria porque queria que eu estivesse com ele. E sabe… as vezes a gente não quer. Mas eu ia. Porém tinha momentos que eu simplesmente deixava ele falando sozinho.
- Por que?
- Porque eu não quero obedecer regras, padrões, limites. Eu nasci sem correntes. Vim ao mundo pra ser livre.
- E por que estava com ele?
- Ai. Quer que eu seja sincera?
- Por favor.
- Ele… não sei dizer. Era o jeito dele. Nós combinávamos. Ele sabia me atrair. Não precisava muita coisa. A companhia dele era tão agradável. Ficávamos horas num tempo só nosso onde a eternidade destilava apenas para nós.
- Misericórdia. Que meleca!
- O que???
- Perdão. Continue.
- As palavras dele pareciam as minhas o tempo todo. Ele me tratava como uma deusa. Mas queria que todos valorizassem nossa relação. Sempre se enganara com olhares e elogios. Teve um tempo que ele se expôs muito. Até pra quem não estava nem aí pra nós. Alguns até achavam nossos filhos estranhos. Mesmo eles sendo nossos diamantes.
- Alguém disse alguma coisa que…
- Alguém? Ha ha ha. Cansei de vê-lo dar ouvidos a outros. Eu sempre dizia que ele era único, mas se sentia muito só. Aí de "conselho" em "conselho", Salomão soltou a coroa.
- E depois?
- Ele perdeu o tato. Era outra pessoa. Se abateu demais.
- Eu percebi que você já não o xinga tanto.
- Ele não merecia. Mas foi o modo que ele lidou com a dor que atrapalhou a gente. Bagunça.
- Mas vocês ainda se… bom. Estavam juntos. Certo? Não havia mais nada que salvasse o relacionamento de vocês?
- Hilda Hist resume minha decepção: "Se me queres de novo, eu te peço; TENTA-ME DE NOVO". Ele desandou. Olhou demais para a grama do vizinho. Para os filhos do vizinho. Se sentiu injustiçado.
- Você fez alguma coisa?
- Eu? Eu sou a melhor coisa que aconteceu na vida dele. No que atrapalhei?
- Você já o negligenciou?
- Ixi. Perdi as contas. Várias vezes.
- Mas por que?
- Porque eu nasci pra ser livre, ué.
- Isso não seria egoísmo ou orgulho de sua parte?
- Não sou escrava de ninguém.
- Então porque estava com ele?
- .... Não sei.
- Já parou pra pensar que ele lhe via como o único porto seguro e foi desprezado?
- Ah! Mas tá dizendo que a culpa é minha agora? Tá do lado dele?
- Não tenho lado. Só vejo que você finge que não errou, mas no fundo sabe que poderia ter sido mais presente.
- Ele olhou demais pra grama alheia.
- Te traiu?
- Ele não teria coragem.
- E você?
- Ah. A gente não é de ferro, né. Mas trair eu não traí. Porém umas olhadinhas não fazem mal. Ele bem que poderia ser como o fulano. Fulano é um exemplo.
- Compará-lo com outros o fazia bem? Você realmente sentia isso?
- .... Não. Não sei. Creio que não tanto.
- Você era presente?
- Sim. Bem... pelo menos sempre estava lá.
- Qual foi a última frase que ele te disse numa briga?
- Que... que eu era muito ausente. Sempre o deixava sozinho.
- E você o que disse?
- ...
- E você? O que disse?
- Por que está me dizendo isso?
(Lágrimas)
- Você sofreu quando ele disse isso?
- S... si... sim.
- Algo te fez perceber que você estava perdendo ele, mesmo estando tão perto?
- Mas não entendo. Eu estava lá...
- Ser presente não é apenas estar lá. É mais do que isso. É fazer com que sua presença seja o que muda o ambiente. Não basta estar lá. Tem que alterar o "lá". Você já provou que estava lá "manifestando" sua presença?
(Suspiro triste)
- Eu… eu…
- Repito a pergunta: sente falta dele?
- Muita.
- Quer voltar?
- Não sei. (choro intenso) Não foi como eu queria. Ele tinha os defeitos dele e…
- Esqueça os defeitos dele, pelo amor de Deus! Pare de focar em defeitos e pense no que deve ser feito para que esse buraco entre vocês não se transforme num pântano venenoso.
- Eu não sei o que fazer. Minha vida tem sido tão…
- Vazia?
- É. Eu sei lá. Parece que…
- Tem um pedaço faltando?
- Isso.
- Você tem dormido?
- Eu nunca dormi sem ele ao meu lado. Apenas fecho os olhos. Ainda sinto ele ali. Quando abro… e ele não está lá…
(Lágrimas)
- Chore. Faz bem às vezes. Lava a alma e desembaça a mente.
- Olha. Eu confesso que se dependesse de mim... ele nunca teria ido embora. Nunca mesmo. Queria que tudo fosse um pesadelo.
- O horário acabou. Tenho um próximo pra entrar daqui a pouco.
- Tudo bem. Só mais uma pergunta.
- Ok. Fique a vontade.
- O que acha que eu devo fazer pra tê-lo de volta?
- Não sou eu quem te digo isso. Aliás. Quem poderia dizer?
- Eu não sei o que fazer. Confesso que…
- Se quer ele de volta... atenda-o quando ele te ligar.
- Mas e se ele não ligar?
- Deu a hora. Faltam cinco minutos para o próximo. Preciso que se retire.
- Uff. Ok. Obrigada.
- Não quer saber quem é o próximo?
- Ah. Quem seria?
- Ele.
- Como assim? Ele? Ele se consulta no mesmo lugar?
- Sim. Na verdade ele veio ontem e eu disse que você era a próxima. Quase não sai da sala. Ao se retirar ficou um bocado de tempo lá fora esperando. Eu iria embora e ele ainda estava lá. Tentou se esconder, mas eu o vi pela janela.
- Então ele vai vir hoje ainda? Tipo… agora? Como vou saber que não está mentindo?
- Por favor. Preciso que se retire.
Ela saiu.
CONTINUA…