O COLAR
                
                           


 
         Continuo a pensar nas pontas, enquanto olho a paisagem pelas grades da janela. A rua larga demais, as flores da paineira, os prédios com suas janelas indiferentes, os passantes anônimos. Dentro, o quadro às minhas costas, único na parede nua. A porta de entrada à esquerda, trancada.
        Ana sempre foi sinuosa, um rio. Suas palavras, sempre troncos à deriva. Nosso lar também um barco, carregando desde o início a sensação de que poderia naufragar a todo momento. Ontem, após o naufrágio, a tarde se escoou sem mais nenhum susto. Agarrado à poltrona sobrevivi, desde então quieto, absolutamente quieto. Ao fundo, ao largo, à margem de mim mesmo.
        Fico pensando nas pontas, só importam as pontas. As contas do colar de Ana se soltaram nas minhas mãos, as contas do seu colar predileto. Ana não soltou nenhum grito. Soltou-se, disse uma palavra redonda, neutra, definitiva. Fechou a porta pelo lado de fora, deixando-me aqui, dentro de lugar algum.
        Fico pensando nas pontas, não sei por onde as pontas. Pegar as coisas. Por onde se pegam mesmo as coisas? Creio que pelas pontas. Só consigo, neste instante, pensar que as coisas se perdem pelas pontas.
        Quando Ana saiu, após a palavra derradeira, a vida e eu nos tornamos apenas um rio sem margens, um rio sem pontas. A água não tem pontas por onde se possa prendê-la, por onde se possa pegá-la.
        Recolho cada uma das contas do colar e vou recolocando-as no fio, com infinita paciência. Faltam algumas, mas consigo recompor objeto quase perfeito. Um pequeno nó nas extremidades e me parece que compreendo quase tudo, enquanto volto a observar a paisagem pelas grades da janela.