O jogo de Eros

Abancado à escrivaninha em São Paulo, na minha rua Lille Lacan. De supetão senti um frio por dentro. Fiquei trêmulo, muito comovido. Com o notebook palerma olhando pra mim, pois eis que me lembrei que lá no norte, meu Deus! Não tão longe de mim, na escuridão ativa da noite que caiu, uma garota um tanto pálida, magra de cabelos escorrendo no canto da cara, depois de fazer sua artimanha do dia, faz pouco se deitou, está dormindo. Essa garota é humana que nem eu.

E por ser humana, hábil leitor, me antevi de seus gestos, surpreendi os seus feitos e provei ser um ser sapiencial. Mas chega de dialeto culto, linguagem difícil de compreender. Basta saber pensar e ter raciocínio lógico, como eu tive, para acompanhar com clareza os relatos que ei de narrar. Atente-se! Pois, se prestarem bem atenção, receberam o grande conhecimento que obtive de um coração enrijecido, incapaz de se iludir.

A razão seguirá a metáfora do pilar (I), e o primeiro que devemos ter em mente é o da interpretação:

I1 = Interpretação

Volto ao descobrimento. Com o notebook palerma olhando pra mim, encontrei Beatriz. Quem é Beatriz? Uma menina nova, pouco encorpada, bonita, porém, metida e nitidamente arrogante no que tange sua estética. Logo pensei “hum, gostei!”. Com a arma dos reaction emoji nas mãos, não pestanejei para clicar em amei, ou ainda o “haha” (quando o post era engraçado). Pensem. As redes sociais virtuais são públicas. O que faço a outra pessoa será de conhecimento público e isso inclui, obviamente e principalmente, a outra pessoa. Ou seja, ao reagir Bia (permitam-me a intimidade), Bia soube. E eu, por outro lado, sabia que ela saberia, e sabia mais ainda que daquilo ela tiraria uma interpretação.

Vamos lá! Quando uma pessoa – principalmente sendo de sexo oposto – reage uma postagem, o que isso significa?

A) Ela de fato reagiu aquela postagem e quis deixar isso evidente a todos.

B) Ela tem interesses eróticos com a pessoa dona da postagem (principalmente se se tratar de uma foto).

C) Whatever.

Bom, vamos as respostas (isso mesmo “as” no plural). Na minha humilde opinião a resposta é claramente a letra A, pois ainda que exista uma motivação subjacente a reação ao post, este sempre restará a análise subjetiva. Portanto, se eu reajo a uma foto de uma garota, posso sim ter interesses nela, como posso estar apenas reagindo sem nenhum motivo concreto, apenas porque quis. Mas, e aí entra o nosso primeiro pilar, para Beatriz só poderia haver uma única resposta, a letra B – poxa, entendam, ela tem 17 anos.

A princípio, sim, ela interpretou minhas reações às suas postagens como um sinal claro de interesse. Não julguei muito importante descrever, mas que fique claro, reagi há mais de um único post. Ocorre que, não basta a mera interpretação, pois dessa sobrevém sempre uma conclusão, então sigamos com o segundo pilar.

I2 = Conclusão

A pergunta é automática: qual foi a conclusão de Beatriz? Óbvio né, de que em algum momento eu iria me declarar todo a ela. Caía a tarde. No pequeno jardim de sua casa, uma linda moça se embalançava indolentemente numa rede de palha presa aos ramos de uma acácia silvestre, que estremecendo deixava cair algumas de suas flores miúdas e perfumadas. A mãozinha afilada brincava com um ramo de acácia que se curvava carregado de flores, e ao qual de vez em quando segurava-se para imprimir à rede uma doce oscilação. Esta moça era Beatriz. Bonitinho.

Esqueci de dizer um fato importante, a menina adora livros românticos. Quando abre a boca para conversar, a impressão que dá é que ela é uma mulher forte, como a tigresa de unhas negras, Íris cor de mel, mas de verdade, tá longe de ser a Sônia Braga de Caetano Veloso. Pra ser bem real, trata-se de uma caipira de canela grossa que não percebe seu sotaque de Mazzaropi, porém se acha a gostosona do bordel. Confesso, que foi justamente a arrogância que me atraiu nela, não o suficiente para desentender seu jogo.

A maior parte das messalinas – agora peguei pesado – interpretam soberbamente, tiram a conclusão estapafúrdia e ponto. Mas Beatriz quis ir além, antes, porém, convém explicar do porquê. Acontece que eu, compreendendo a sua compreensão (perdoem-me o pleonasmo), evitei que ela se sentisse na razão. Ao ver, portanto, que estava na espreita, aguardando-me e crendo que viria rastejando como um cão, quebrei suas expectativas e simplesmente a tratei com desdém. Ora, como sou mal.

Lembro-me bem. “Ah, então agora você se senta aqui?” - comentava fingindo surpresa ao notar nossa pouca distância no trabalho, pois se antes nos sentávamos longe um do outro, com uma “coincidental” mudança, passamos a trabalhar quase um do lado do outro. Eu vi em seus olhos a prepotência. Ouvia ela falar em sua mente “logo, logo, ele vai começar a me paquerar incisivamente, porque eu sei que ele me quer”. Mal sabia ela que antes de tudo e sobretudo, eu me amava e jamais me sujeitaria aquele joguinho. Ao ver que não me renderia fácil, ela inaugurou um terceiro e curioso pilar.

I3 = Desejo

Bia, interpretou mal – tudo bem, parcialmente mal – e, consequentemente, concluiu mal. Mas determinada que de certa forma era, passou a desejar a razão. Essa parte é incrível! Ao ver que eu não corri rastejante até ela, uma ira tomou conta da mesma. Aos poucos, quando menos me toquei, uma inimizade havia se estabelecido. Antes ela me consultava quanto a qualquer dúvida que tinha. “Novo parceiro de trabalho, poderá me ajudar sempre”. Agora, negava minha ajuda e recorria a um companheiro que exercia a mesma função que eu.

Está é a hora em que eu amoleço como uma Maria-Mole e corro em direção a minha amada, tentando com todas as forças recuperar o seu amor. Ênfase na ironia por favor. Sinto que poderia até mesmo cantar. “Começaria tudo outra vez, se preciso fosse meu amor. A chama no meu peito ainda queima, saiba, nada foi em vão. A Cuba-Libre dá coragem em minhas mãos. A dama de lilás me machucando o coração. A sêde de sentir seu corpo inteiro coladinho ao meu. Então eu cantaria a noite inteira como eu já cantei, cantarei. As coisas todas que já tive, tenho e sei, um dia terei. A fé no que virá e alegria de poder olhar pra trás e ver que eu voltaria com você, de novo viver neste imenso salão ao som deste bolero. Vida, vamos nós, e não estamos sós. Veja meu bem. A orquestra nos espera e por favor mais uma vez recomeçar”.

Daquele momento em diante a cumprimentava com mais cortesia, e ao vê-la triste, lhe confortava. Recordo-me de dizer “se precisar de alguém pra desabafar, estou aqui (sem segundas intenções), pois te considero uma menina legal”. Vejam, que meigo. Sou como uma seda quando quero. Esperava que ela fosse se afeiçoar por aquele novo eu, totalmente comprometido, conforme ela esperava, mas não é que me enganei. Safada! Ela usou daquele momento para revelar seu quarto e último pilar.

I4 = Conquista

Na visão dela, a conquista. “Olha como ele veio, conforme eu havia concluído. Agora é partir para o plano B, humilha-lo". Depois de Gonzaguinha irei rememorar Kelly Key. “Vem aqui que agora eu tô mandando. Vem meu cachorrinho, a sua dona tá chamando”. Ai, que nostalgia vergonhosa. Beatriz pensava ser o eu lírico desta música. Menina boba. Ela quis escarnecer. Tratou minha gentileza com secura e voltou a utilizar do meu companheiro para me provocar. Saibam, eu adoro. Talvez, eu tenha tendências sádicas.

O que fiz? Voltei a ser o indiferente. Sou de fato indiferente? Não, com certeza não. Penso nela o tempo todo e no jogo que estamos montando. No amargor dos dias, esse joguinho adolescente tem sido minha alegria, minha descontração. Creio que ao final dará em nada. Mas, vale pela boêmia. Não sei se ela está se divertindo, porém eu estou. Como esconder por exemplo o regozijo de vê-la tentando chamar minha atenção no ponto de ônibus na hora de ir embora do nosso local de trabalho. Ela vem ao meu lado, me ignora, mas fala alto. Entenderam? Ela encosta do meu lado, quase tocando-me, não fala comigo, mas com quem ela fala, fala gritando. Tá querendo que eu a escute, tá querendo que eu a perceba. O que eu faço? Volto meu olhar para ela e a avalio sem pudor, depois volto como quem não quer nada. Como sou sem-vergonha.

Caríssimo e atencioso leitor, deve estar pensando que não presto. Não é bem isso. Eu nem sempre fui assim. Já bobo como a Beatriz, não tão soberbo como ela, pois minha estima era geralmente muito baixa, mas bobo igual. Iludia-me, pensando que estava iludindo. Enfim, fui constantemente enganado. Até que compreendi o jogo da vida e hoje jogo bem. Pessoas previsíveis como a Bia, eu analiso como uma base sustentada por pilares, depois renomeio estes pilares de acordo com teus signos. São muitos calos e histórias incomparavelmente menos lúdicas que esta, pra chegar onde cheguei.

E Rodrigues
Enviado por E Rodrigues em 03/09/2019
Reeditado em 03/09/2019
Código do texto: T6736744
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