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Na faculdade, Michela estava numa aula prática de anatomia. O professor fazia a necropsia de um bebê que, de acordo com o laudo médico, havia nascido com sérias complicações respiratórias e entrara em óbito após permanecer quarenta dias na UTI. Michela estava ali, mas sua mente estava muito longe. 
 
Ela continuava indecisa quanto ao seu casamento. Rafael era um bom companheiro, porém tinha um temperamento fechado, bem reservado, não parecendo ter iniciativa para nada e para quem tudo estava sempre bem; diferente de Junior, um rapaz carismático e espontâneo que sempre mostrara gostar muito dela.
 
O professor concluiu sua dissertação sobre o feto estudado e buscando saber se esta turma havia absorvido todas as informações dadas, perguntou:
 
- Alguém tem alguma dúvida do que foi considerado aqui?
 
Alguns alunos ergueram a mão e o professor respondeu a todos. Michela, embora não tivesse levantado a mão, conseguiu chamar a atenção do professor sobre si, uma vez que ficara o tempo todo com o olhar fixo nos restos mortais do nascituro sobre a mesa.
 
- Está tudo bem com você, Michela? – perguntou ele.
 
Michela nada respondeu. O professor perguntou mais uma vez
 
- Michela, você tem alguma observação a fazer sobre o que foi ensinado hoje?
 
Os alunos se voltaram para ela.
 
- Desculpe-me, professor, o senhor disse alguma coisa?
 
- Não, eu não disse nada, - respondeu ele, ironicamente - na verdade, eu acabei de concluir a minha aula, mas, pelo jeito, a senhorita estava em outra dimensão!
 
Envergonhada, Michela saiu correndo da sala de aula e o professor ficou sem entender nada do que estava acontecendo com sua aluna.
 
- Será que eu disse alguma inverdade aqui? – perguntou ele, olhando interrogativamente para o resto da turma.
 
- Deixe estar, professor – disse Pâmela – eu vou ver o que está havendo com ela.
 
- Faça isso, Pámela, pois eu tenho mais o que... bom, se precisarem, peçam para me chamar na sala dos professores.
 
 Pâmela saiu pelos corredores e encontrou Michela encostada na parede de um deles desmanchando-se em lágrimas.
 
- O que foi amiga, posso ajudar em alguma coisa?
 
- Ninguém pode me ajudar.
 
- Quer conversar comigo? Tenho percebido que você anda dispersiva nas aulas já faz alguns dias. Ontem você parecia estar feliz e hoje está triste demais. Pode me dizer o que está acontecendo?
 
Michela passou a mão no rosto tentando enxugar as lágrimas.
 
- Vamos para o pátio e poderemos tomar um pouco de ar mais fresco – continuou Pâmela - agora é intervalo mesmo.
 
- Vamos – disse Michela.
 
No pátio, Michela e Pâmela sentaram-se num dos bancos do belo jardim e Pâmela esperou a amiga sentir-se à vontade para falar.
 
- Eu estou muito confusa – começou ela – vou me casar no próximo sábado, mas ainda não sei se é realmente isso que quero.
 
- Entendi... você não está certa se gostar dele o suficiente a ponto de se casar...  Tem outro cara na jogada?
 
- Mais ou menos... Eu até gosto do meu noivo, sim, porém surgiu uma pessoa do meu passado e me deixou meio balançada.
 
- Este ex-namorado estuda aqui também?
 
- Sim. Ontem nós nos beijamos muito e por muito pouco não fomos para a cama.
 
- Agora está explicado por que você parecia tão contente. Mas essa sua angústia tem a ver somente com ele? É que eu notei que você já estava meio distante da realidade há alguns dias.
 
- É verdade, somente com a aproximação da data do casamento foi que a ficha caiu para mim e percebi que não é bem isso que desejo para a minha vida exatamente agora, talvez mais para frente. O fato de rever meu ex-namorado somente me confirmou isso.
 
- Quem é ele, eu conheço?
 
- Acho que não, ele está na turma do professor Aníbal Amim – disse Michela desviando o olhar para a portaria. Nós nos conhecemos há sete anos, eu estava no segundo ano do ensino médio, ele ainda na oitava série... O pai dele é advogado do meu pai. Naquela ocasião, eles ofereceram um churrasco e minha família foi convidada... e ali mesmo já pintou um clima entre a gente... um ano, um ano e meio depois nós começamos a ficar e depois namoramos por quase três anos.
 
- E vocês terminaram o namoro por qual motivo?
 
- Na verdade, por um motivo bobo, irrelevante... talvez pela diferença de idade entre nós...  Ele é quase três anos mais jovem ... por isso terminamos. Mas desde então ele não namorou outra pessoa. Eu também fiquei um ano sozinha sem querer namorar ninguém até que, dois anos atrás, conheci o Rafael. Eu e Junior não perdemos o contato, pois vez ou outra ele me liga para saber como estou. Todavia, depois que terminamos o namoro, ontem foi a primeira vez que nós saímos juntos para conversar.
 
- Parece que estar com ele te deixou balançada...
 
- Deixou mesmo! E o pior é que, estando na beira da lagoa do Ibirapuera, ontem rolou um clima forte e fomos parar num motel, mas eu não consegui e não aconteceu nada.
 
- Ele compreendeu a situação?
 
- Sim, numa boa!
 
- Tem certeza que esse cara é real? – disse Pâmela meio surpresa – é difícil um homem aceitar uma coisa dessas numa boa.
 
- Mas o Junior é especial, é um cavalheiro como diz a minha avó. Depois eu o levei em casa, porém mal cheguei em meu apartamento, ele ligou dizendo que estava na minha portaria.
 
- Como assim?
 
- É que, como ele vai completar 21 anos no fim do verão, o pai o presenteou com um pick-up Mitsubishi e ele quis logo me mostrar seu presente... Aí nós fomos a um bar restaurante lá perto de casa e depois trocamos uns beijos. É isso.
 
- Você quer dizer que é aquele rapaz que chegou hoje em uma Mitsubishi novinha em folha?  Cara, ele é o máximo!
 
Michela não gostou nada daquele comentário entusiasmado e Pâmela notou.
 
- Ah, desculpe, querida, mas ele é mesmo demais!
 
- Tudo bem, mas o fato é que se eu já estava um pouco confusa quanto ao casamento, agora estou mais perdida ainda.
 
- Eu não queria estar na sua pele, mas pense com o coração e somente depois tome uma decisão com calma... Agora vamos almoçar, menina, porque eu estou mortinha de fome e daqui a pouco já vai começar a próxima aula.
 
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Por ter passado a noite toda em claro fazendo companhia para Giuseppe, - que além de ser casado com sua antiga paixão, de ser amigo, era um dos seus melhores clientes - Fernandes não aguentou e dormiu bem mais do que esperava e já passava das doze horas quando ele chegou ao escritório.
 
- Boa tarde, Mayára.
 
- Boa tarde, Dr. Fernandes, tudo bem com o senhor?
 
- Sim.
 
- Desculpe-me por perguntar, mas é que na mensagem que me deixou na secretária eletrônica não havia nenhuma boa explicação, somente dizia que viria na parte da tarde e para remarcar o horário dos clientes da manhã. Eu fico preocupada pois já é o segundo dia consecutivo que o senhor chega tarde, não sendo seu hábito fazê-lo, doutor!
 
- Não se preocupe tanto, minha cara – disse ele, meio sorridente meio constrangido com aquela conversa – eu só precisava dormir um pouco já que passei a noite em claro fazendo companhia para Giuseppe.
 
- Perdoe minha indiscrição, doutor... mas é que trabalho aqui há tanto tempo que acabo por conhecer todos os seus hábitos.
 
- Sossegue, menina, pois você não será mandada embora só por isso! E como ficou a minha agenda para hoje?
 
Mayára ficou vermelha como um pimentão ao perceber que estava se excedendo um pouco e, confusa, passou a vasculhar a mesa como se houvesse esquecido onde havia colocado sua agenda.
           
- O que você está procurando? – perguntou Fernandes meio impaciente.
- Minha agenda, será que a deixei sobre a mesa do senhor?
 
- Creio que não, pois parece que ainda está em sua mão...
 
- É mesmo, onde eu estou com a cabeça?
 
Mayára passou a folhear a agenda nervosamente. Percebendo que ela estava desconcertada pela conversa entre eles, Fernandes decidiu deixá-la a sós de modo que pudesse tomar um fôlego e, assim, reorganizar-se.
 
-Bem, enquanto você procura suas anotações, eu vou indo para a minha sala. Leve-me a agenda logo que possível para que eu verifique as atividades da tarde.
 
Fernandes entrou em sua sala, colocou a pasta sobre a mesa e abriu a janela para que o ar fresco circulasse no ambiente abafado. Enquanto ele observava o trânsito na avenida, Mayára bateu a porta.
 
- Entre – disse ele.
 
- Com licença, doutor, aqui está a agenda do dia. Às 14h, o senhor tem uma reunião com o Sr. Demétrio, da agência de assessoria Evolution Clinica; às 15h3o, visita ao imóvel onde será construída a clínica Weruska Godoy.
 
- E para hoje é só isso?
 
- Sim, pois a sua consulta com a doutora Marisa foi remarcada para amanhã às 10h00.
 
-  Está bem, Mayára, obrigado.
 
Quando ela já fechava a porta atrás de si, Fernandes a interpelou:
 
- Você saberia me dizer se o boy levou os documentos para meu filho assinar?
 
- Sim, doutor. Ele já deve estar voltando.
 
- Ótimo, mande-o levar os documentos para que o Dr. Edgar possa dar andamento em tudo, assim que ele chegar.
 
- Fique tranquilo, doutor, pois farei isso assim que o boy chegar.
 
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Quando Junior entrou no restaurante da faculdade para almoçar, Michela já estava de saída.
 
- O que aconteceu, – perguntou ela, surpresa – o professor o reteve na sala de aula?
 
- Não, é que eu tive que ir até à portaria assinar uns documentos, coisas de uma clínica que meu pai cismou em montar para mim.
 
- Bem, eu já almocei, mas eu lhe faço companhia, se você quiser.
 
- Até que seria uma boa ideia!
 
- Ok, então fico aqui com você.
 
Junior pegou a bandeja, prato e talheres, serviu-se de um pouco de tudo que tinha no buffet, exceto do doce da sobremesa. Antes de sentar-se, ele verificou que tinha exatos vinte minutos para almoçar e voltar para a sala de aula. Assim, tendo que correr contra o tempo, ele começou a comer rapidamente.
 
- Ei! Vá devagar, rapaz, a comida não vai fugir do prato, não.
 
- Você tem razão e, além do mais pode acabar me fazendo mal.
 
- Exatamente.
 
Ele passou a alimentar-se com mais vagar, saboreando melhor a comida sob o olhar vigilante e terno de Michela. Percebendo que ela o observava assim, ele passou o guardanapo na boca e disse meio encabulado:
 
- Estou comendo rápido demais, ainda?
 
- Não, estava só observando. Diga-me: a festa ainda estava rolando quando você chegou em sua casa?
 
- Não, todos já tinham ido embora, mas sabe quem estava lá ainda?
 
- Não faço a menor ideia!
 
- O seu pai.
 
- O meu pai? Estranho isso... ontem, bem cedinho, ele passou no meu apartamento dizendo que ia passar no escritório do seu pai e que ia embarcar para a Itália de tarde a fim de visitar tia Isabelle, de 88 anos, que está muito doente. Será que aconteceu alguma outra coisa?
 
- Eu creio que não... Ele realmente mencionou que ia para Itália e foi, pois meu pai o levou ao aeroporto de madrugada.
 
- Bem, então é provável que eu tenha me enganado quanto ao horário correto.
 
- Talvez, mas, pelo o que eu entendi, ele teve mesmo que adiar a passagem para algum voo da madrugada.
 
- Mas por que ele não foi dormir no meu apartamento, então?
 
- Não sei dizer exatamente, mas pode ser que ele precisasse resolver alguma pendência de negócios com o meu pai, alguma coisa que não podia esperar.
 
- Você pode ter razão, sim, mas hoje de noite eu ligarei para ele e ficarei sabendo o que aconteceu de fato.  Fiquei curiosa.
 
Junior nem terminou seu almoço direito, tomou apenas a metade do suco e, enquanto devolvia o copo à mesa, notou que seu relógio já marcava 12h55min.
 
- Caramba, temos cinco minutos para estar na sala de aula! – disse ele, levantando-se apressadamente da cadeira.
 
No corredor ele foi para esquerda e Michela para a direita, mas num impulso incontrolável ele olhou para trás e perguntou-lhe:
 
- Podemos nos ver hoje de noite?
 
Pega de surpresa, Michela ficou parada bem no meio do corredor sem saber se lhe dizia sim ou não.
 
- Sim ou não? forçou ele, pois estava com pressa demais para deixá-la refletir melhor.
 
Ela olhou para ele como se o estivesse vendo pela primeira vez e, meio estranhamente, respondeu-lhe:
 
- Sim... a gente se vê em meu apartamento às oito horas. – disse apressadamente e correu pelos frios corredores da faculdade.
 
 
 

 
Felipe Felix
Enviado por Felipe Felix em 31/08/2019
Reeditado em 03/09/2019
Código do texto: T6733597
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