Não Era Tarde



          O Theatro Real de Covent Garden apresentava seu primeiro balé: Pigmaleão. Marie Sallé estava encantadora, fantasiada, juventude franca, graciosa. Mas o interesse de Manuel Gonzaga era a esguia Lady Alexandra. Foi o único homem que não suspirou fundo, quando a prima-dona rompeu com as convenções, despindo-se de seu colete, e dançou em roupas diáfanas. Ela sentia os olhos negros aprisionados a sua figura. Sensíveis à beleza dos sorrisos espontâneos, da expressão sonhadora, da pele rosada salpicada de sardas, dos cabelos castanhos claros, encaracolados.

          E, o encantamento veio à primeira vista. Ah! O tocar das mãos... No mercado, ambos buscaram as mesmas frutas. Ele sorriu e se afastou com um gesto de reverência.  Saudável, vigoroso, bem-apessoado. Talvez um pouco maltratado pelo clima. Seria o destino? Lady nunca recebia permissão para sair apenas com serviçais, muito menos pelas ruas...
             — Aquele moço... no cavalo tordilho, sabe quem é, Mary? — trazia as faces rosadas.
          — Ah! Veio de uma colônia portuguesa, ouvi comentar... Parece ser um verdadeiro cavalheiro em suas ideias e atitudes... — a criada sorria maliciosa.
               — Mas, nem um pajem, nem um camarada. . . ele só com sua garrucha. Somente plebeus andam assim... — Alexandra suspirou — está se vendo que ele é realmente pobre. Quem sabe se mesmo o cavalo em que anda não é emprestado!
 
          Em outra ocasião, Gonzaga estava na da recepção de Mr. Walker. Portava máscara, como indicado nos convites, porém a jovem o reconheceu pelo encaracolado dos negros cabelos e pela conversa com um grupo de cavalheiros. Inglês correto, sotaque estranho:
          — Vim para negociar ouro. Pelo justo valor. Regressando à Capitania das Geraes, as libras financiarão um movimento de inconfidência.
          — Esse novo mundo permite a pessoas de berço obscuro obter uma distinção imerecida, e dá a certos homens acesso a honrarias com as quais seus pais e avôs nem sequer sonharam — um lorde critica.
           — É verdade, é verdade. O que o nobre senhor está dizendo é a pura verdade. O Brasil vive uma situação crítica, depois do alvará de D. Maria. O trono alega que, vem surgindo muitas fábricas e manufaturas, com prejuízo da lavoura e da exploração de minerais — explanou o forasteiro.
          — Por isso o contrabando? — risadas ironizavam o amor pátrio de Manuel.

          Alexandra, que havia escutado com grande atenção a conversa toda, saiu da sala em busca, no ar fresco, de um alento para as faces coradas, e, enquanto caminhava pelo arvoredo ouviu passos atrás de si. Voltou-se com um leve suspiro e admirou-se por notar que o colono a alcançava e se dirigia a ela em amável conversa. Surpreendentemente era conhecedor de Bach e discursava sobre as suaves notas de Cello Suite que os embalava de longe.
          — Mais alguns meses, e talvez eu esteja andando por aqui definitivamente — era um rapaz incrivelmente vistoso, dono de grande inteligência, espirituosidade e sagacidade; e Alexandra era uma jovem extremamente atraente, dotada de suavidade, modéstia, bom gosto.
 

          As tentativas de Gonzaga em conquistar as boas graças de Lady Alexandra tiveram outras oportunidades: conversas sobre a terra natal, cartas, troca de olhares lânguidos e juras. Os dois foram se conhecendo aos poucos e, depois de se conhecerem, apaixonaram-se rápida e profundamente. Seria difícil dizer qual dos dois viu no outro perfeição mais altaneira ou qual dos dois foi mais feliz: ela ao ouvir as declarações e pedidos dele ou ele em vê-los aceitos. Seguiu-se um curto período de extrema felicidade, mas um curto período apenas...

          A música e o balé confundiam-se com seus pensamentos. Seria melhor casar-me por amor? Um rapagão como aquele que não tira os olhos de mim... Não. Tenho de ser racional e lógica. Alexandra crescera, desenvolvera em plena liberdade todas as suas graças naturais, e conservou ao lado dos encantos da puberdade toda a singeleza e inocência de menina.  Em sua concepção do decoro, os modos eram considerados uma referência da boa estirpe; tinha alguns preconceitos no que dizia respeito à hereditariedade. Tratava-se de um reles cavaleiro que poderia lhe dar felicidade, amor. Porém, o pai dava ao título de baronete todo o valor que este merecia.
          — Recebi uma inesperada proposta: uma pequena e próspera fazenda no interior em troca do seu casamento com Mr. Carter Thompson. É um homem decente, mas ambicioso. Quer um título de nobreza. Já é tempo de ter um marido... — Alexandra não conseguia tirar da mente as palavras do pai. Demonstrou um zelo aflito em relação ao assunto que considerava com grande seriedade. Era uma jovem de qualidades sólidas, e sentia dificuldade para tomar uma decisão na questão devido à oposição de princípios importantes. Ela própria possuía uma firme integridade e uma delicada noção de honra.

          A filha desejava poupar os sentimentos de Sir William
Smith, preocupava-se com a reputação da família e dedicava tamanha nobreza na avaliação do que lhe era devido, quanto poderia ter qualquer pessoa dotada de bom-senso e honestidade. Totalmente consciente de que o pai era inescrupuloso, não se importava com os sentimentos dela e de quem mais se opusesse como um obstáculo para alcançar suas metas, respeitava-o. Benevolente, caridosa e boa, capaz de estabelecer vínculos fortes, muito correta em sua conduta. Entretanto... O quê? Todos os confortos da vida eliminados! Viagens, criados, cavalos, comida... reduções e restrições por toda parte! Viver sem ter nem sequer as decências de uma modesta dama! Não há vantagens no casamento com um homem sem tradições e sem conexões familiares importantes! Futuro incerto.

          Precisavam economizar, disto não havia dúvida. A família traçou planos para a contenção de gastos, realizou cálculos exatos. Privilegiar a honestidade em detrimento da importância. Ela deveria pensar com justiça e equidade; achava que era dever indispensável do pai sanar as dívidas junto a seus credores com toda a rapidez que as mais amplas economias pudessem garantir, e não considerava digna qualquer outra atitude.
 
          Mary, no dia seguinte ao do balé, chegou do mercado com uma pequena carta que entregou a Alexandra cautelosamente:
“Devo voltar à minha terra natal por pouco tempo e finalizar obrigações. Depois regressarei de vez à Inglaterra. Quero ter família, viver em paz. Já não posso seguir me privando do prazer de aproveitar sua amável companhia. Muito doloroso saber que não lhe seria possível aguardar o meu regresso. Não sei até que ponto vai sua afeição por mim... Sou grato e afetuoso. Sempre seu, Manuel Gonzaga”.

          —Faz-nos, de fato, justiça, ao acreditar que os homens são capazes de um verdadeiro afeto e uma verdadeira constância? Homem de aventuras — a jovem mostrou sua decepção. Começou a soluçar e, mesmo ciente da inconveniência, confidenciou à serviçal — ontem, após o jantar, marcamos o casamento, acontecerá no início de Julho...

          Apesar dos atributos do berço, da beleza e do espírito, desperdiçar a si mesma aos dezenove anos, envolver-se em um noivado com um rapaz que nada tinha para recomendá-lo a não ser ele mesmo, e sem qualquer esperança de alcançar uma boa situação a não ser os acasos, sem parentes para nem sequer garantir uma progressão, seria de fato um desperdício que lhe causava desgosto só de pensar!
 
          — Cheguei atrasado — Gonzaga lamentou com Mary, que lhe narrava os eventos passados, ali à porta da decadente mansão Smith, que se preparava para a reforma. Ele ficou parado, olhando rumo ao balcão do segundo piso, não enxergando nada e, em preces, agradecendo por não poder vê-la com o branco de noiva.
Mas, e o destino? A decisão tomada foi algo muito diferente da inclinação natural da mulher.
 
 
          Alexandra saía, toda vestida de preto, da Abadia de Westminster. Do alto da escadaria, com o coração a bater mais rápido, ela sentiu o olhar dele e podia ler-lhe os pensamentos: Luto? Quem teria falecido? O pai? A mãe? Um possível filho? Ou... o esposo? Manuel Gonzaga passou as esporas no animal e desapareceu em galope pelas ruas.
 
               Mais alguns meses e, enfim, eles à porta da DR Harris & Co. Ela saindo. Ele entrando. Frente a frente. Alexandra Já não estava de luto fechado, usava azul, com uma tarja preta. Não havia como se evitarem:
               —Soube o acontecido, meus sentimentos.
             — Grata! — sem encontrar mais palavras, consternada abriu passagem para o homem.


          Cinco anos e meio transcorridos desde a conclusão do pequeno romance cheio de melancolia. O tempo neutralizara grande parte e talvez todo o afeto singular que nutriam? O arrependimento e a mágoa enevoavam todas as alegrias. Alexandra depositara uma confiança excessiva em si: não obtivera qualquer ajuda de uma mudança de ares nem, de alguma novidade ou ampliação de suas amizades. O esposo teve uma morte violenta, fruto de um espírito intolerante e vingativo Nunca a respeitou verdadeiramente. Não havia ninguém que se comparasse a Gonzaga, tal como este sobrevivia em sua lembrança. Já não conseguia  permanecer em silêncio. Tinha de lhe falar pelos meios ao seu alcance. Aquele amor trespassava-lhe a alma. Sentia-se entre a agonia e a esperança. Soube que havia perguntado por ela de forma casual, como era adequado para um antigo conhecido sem grande intimidade, parecendo lhe atribuir pouca importância.
          — Não diga que é muito tarde, que sentimentos preciosos morreram para sempre. Declaro-me novamente com um coração que é ainda mais dele do que quando o despedacei — confessou à fiel Mary.
               — Que absurdo retomar a agitação que esse intervalo havia embaçado e banido para longe!  Acontecimentos de todo tipo, mudanças, distanciamentos, partidas... tudo, tudo podia ser incluído em tal intervalo, e também o esquecimento do passado... nada mais natural, nada mais certo! — Manuel ponderava com a mesma Mary, que se tornava uma gentil alcoviteira.

               Os encontro foram se sucedendo e a paixão se reacendia. De nada valia raciocinar consigo mesma e tentar moderar as próprias sensações. Talvez nem mesmo a mais profunda sensatez tivesse sido capaz de impedir o dia em que se falaram.

          — Não diga que mulher esquece mais depressa que o homem, que o amor dela morre mais cedo. Eu não amei ninguém se não a si. Posso ter sido injusta. Posso ter sido fraca ou rancorosa. Mas nunca inconstante — e, no instante seguinte, ela se envergonhava pela loucura com que havia se declarado.

          — Voltei a Londres unicamente por sua causa. Os meus pensamentos e planos são todos para si. Não reparou nisso? Não se apercebeu dos meus desejos? Se eu tivesse conseguido ler os seus sentimentos, como creio que deve ter decifrado os meus, não teria partido.
               — É essa a mulher que eu quero – disse ele. — Se eu for um tolo, serei um tolo de verdade! — Entrelaçou-a com os musculosos braços, beijaram-se com ardor.

               — Responda-me se, naquela época, dono de alguns milhares de libras, eu houvesse lhe escrito, teria respondido à minha carta? Em suma, teríamos noivado nessa ocasião?

          — Se eu teria reatado? – foi tudo que ela respondeu; mas seu tom de voz não deu margem a dúvidas.

          — Meu Deus! – exclamou ele. – Teria aceitado! Não que eu não tenha pensado nisso, nem desejado tal fato como a única coisa capaz de coroar todos os meus outros sucessos; mas fui orgulhoso, orgulhoso demais para a pedir. Não conseguia entendê-la. Fechei os olhos, e não quis expor que era dono de uma fortuna, e tão bem-sucedido na profissão quanto o mérito e o esforço poderiam ter permitido — não era um homem qualquer. Na época, seria considerado digno o suficiente para cortejar a filha de um baronete tolo e perdulário, desprovido de sensatez ou princípios suficientes para permanecer na situação em que a providência o havia colocado.  A família pertencia à nobreza portuguesa, Mesmo nascido e criado no Brasil, continuava conde.

           — Assim como outros homens em situação adversa, porém – acrescentou ele com um sorriso — preciso tentar subjugar minha mente ao meu destino. Preciso aprender a tolerar ser mais feliz do que mereço.
 

          Quem pode duvidar do que aconteceu em seguida? Quando dois amantes assim decidem se casar, é quase certo que, graças à perseverança, acabem por consegui-lo. Anos de separação e sofrimento poderiam ter sido evitados. Sempre acostumado à satisfação de me julgar merecedor de todas as bênçãos que recebia. Ufanava-me de meus esforços honrados e de minhas recompensas justas.
 
          O grande dia chegou, os salões foram iluminados, o grupo se reuniu. Para Alexandra, porém, nunca houvera noite como aquela. Radiante e embelezada pela sensatez e pela felicidade, e mais admirada do que poderia notar ou dar importância, ela demonstrou alegria e paciência com todos que a rodeavam, em singular cordialidade e fervoroso interesse. E, com Manuel Gonzaga, instantes de comunicação ocorreram com frequência, e sempre a esperança de haver outros, e sempre a consciência de que ele estava presente!



 
 
 
Fheluany Nogueira
Enviado por Fheluany Nogueira em 30/08/2019
Reeditado em 30/08/2019
Código do texto: T6732961
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.