Decorridos um dia e uma noite sem qualquer notícia, não era de se acreditar que o vaqueiro José Lino ainda pudesse estar vivo. Euzébia enxuga as lágrimas que lhe escorriam no rosto. Desgosto profundo tem uma mãe, quando perde um filho. Sozinha no quarto de dormir, ela desatava uma oração atrás da outra, invocava São José dos Vagueiros e pedia à mãe Medianeira que intercedesse pela vida de José Lino.
Absorta em suas preces, não percebeu a chegada de Nhá Santa.
— Tome  — disse Nhá, entregando-lhe uma caneca de louça com chá de jasmim.  Euzébia levantou-se. Tomou o chá e foi pra varanda. Descansou os cotovelos na balaustrada, percorreu com o olhar todas as mangas ao derredor, até aonde sua vista alcançava. Emocionada, viu no meio da pastagem um vulto cavalgando o trote da vitória.
— É seu José Lino! — gritou um menino.
— E traz um couro de bicho na lua da sela, pintado, bonito, estampado em preto e amarelo-ouro como chita.
Simultaneamente, João Velho e vaqueiro Alexandre Guedes se aproximavam vindo da  direção de Sete Passagens, enquanto José Lino chegava pela estrada velha que dá no rio Verde.
Naquele instante, uma pessoa aparece na janela. Depois, cada janela tinha duas ou três cabeças de curiosos. Coronel Generoso  chega    fumando um cigarro de palha.
— Onofre, faça o combinado!
— O boi, patrão?
— Sim! O boi da matutagem. Separe e entregue a Turíbio Medonho.
— Vai ter  missa?
— Não dá tempo de chamar o padre.
— Com licença, patrão. Preciso tomar providências.
— Espere... Passe no curral e confira se a índia está bem amarrada. Não quero acidente na festa. Vá até a oficina e mande Zé Coco guardar as ferramentas. Quero ouvir “Guiano em Oitava
— Tô indo, patrão.
O  juízo de Onofre ferveu.
Catou quatro pedrinhas e pôs na algibeira. Cada uma delas  representava uma ordem recebida. À medida que fosse cumprindo a missão, retirava uma pedra e jogava fora. No fim se sobrasse pedra, faltava cumprir alguma obrigação.  Mas Generoso dera três ordens. E Onofre pôs quatro  pedrinhas na algibeira!...Bem,  a outra era para se lembrar de  ir a Juramento, comprar extrato Dirce pra ficar  cheiroso...
Foi.
Teve vontade de soltar a índia pra ela  ir se acostumando com o povo. A índia Apinajé estava presa por uma corda ao  coração do vaqueiro. Ninguém podia se aproximar da índia. Mas Onofre chegou perto. Perto demais daquele coração selvagem.  O vaqueiro ofereceu-lhe   água numa cuité. Apinajé aceitou. Bebeu, e seu espírito ouviu a voz do  Deus de homem branco, saindo do coração do vaqueiro.
A torre de Babel desmoronou-se. Índia e vaqueiro falavam agora   a mesma língua.
— Chegue aqui!...
— Posso não! Homem branco é  inimigo. Mata  mãe natureza, e nossa gente.
Nenhuma palavra humana é capaz de descrever o que Onofre viu e sentiu ao perceber que estava em franco diálogo com uma índia selvagem pela qual se apaixonara.
— Vaqueiro ter cheiro bom — disse Apinajé.
— Índia ser bonita. Ter cheiro de mata orvalhada, ovelha molhada,  leite fresquinho e tupixaba. Cheiro de vassourinha varrendo forno de fazer biscoito caseiro.
— Índia gostar de vaqueiro.
— Lá vem o povo.  Finja que não fala a língua de homem branco.
Onofre retirou-se.
A notícia que uma índia tinha sido capturada nas imediações da fazenda Campo Grande espalhou-se, rapidamente. Gente da circunvizinhança veio conhecer aquele vivente estranho. Até o padre que celebrava na capela da Catarina, também apareceu por lá.
— Não pude faltar a seu chamado,  coronel Generoso. Obrigado por mandar o vaqueiro Onofre me avisar. Eu estava mesmo curioso para saber sobre a índia capturada na fazenda Campo Grande.
— A notícia deve ter viajado léguas — acrescentou Generoso.
— Creio que o senhor foi prevenido, ao mandar abater um boi para a festa. Vai chegar muita gente na fazenda. Isto é bom. Muita gente só não é bom, quando a comida é pouca. Vou aproveitar a aglomeração para celebrarmos a festa do vaqueiro. Meio fora de época, mas bem a calhar para festejarmos a vida do vaqueiro  que dado como morto foi encontrado.
—Sou todo agradecido pela novidade. É a primeira vez que se reza uma missa de vaqueiro nesta fazenda.
—  Onde está o vivente?
— A índia?
— Sim!
— Está amarrada na casinha de Curral. Venha ver, Padre!
A caminho do curral, uma multidão de  homens, mulheres e crianças seguiam o sacerdote como ovelhas atrás do pastor.
— É bicho do mato — disse um deles.
 — É gente, retrucou outro.
— Não come nem bebe.
— Sem comer pode até durar alguns dias; sem beber morre logo!
— Morre não! Na hora que a sede apertar ela bebe. Bicho sente o cheiro da água de longe!
— E água tem cheiro, abestalhado?
Pururuca baixou as vistas. Jurara a Nossa Senhora de Montes Claros, que não faria mais nenhuma arte com ninguém. Nem mesmo com os animais. Tudo é criatura de Deus.
João Velho acudiu.
 — O animal vem  farejando a água no  cheiro da terra molhada.
Pururuca do Curral de Dentro arrepiou, como se uma onça farejasse seu rastro. Olhou para trás. Viu uma multidão que descia em  direção ao curral. Sentiu-se protegido. A onça mostra-se ao da frente, mas ataca é o derradeiro. Ele estava no meio.
— A índia vai morrer de fome.
— Preste atenção! Ela comeu  carne assada!  Comeu na mão de Onofre. Onofre deu carne mal passada. Quase crua. Ela comeu. O povo rico também come carne desse jeito. Sangue escorrendo.
— Porcaria! Deve ter ‘nicróbe’.
—  Ô seu  torresmo  rançoso, a gente diz micróbio.
Alguém  estalou os dedos, imitando o mastigar de torresmo: “trek... trek”. Pururuca se conteve. Não queria brigar por causa de apelido!  Zé Pilão brigava. E a molecada pirraçava gritando por onde ele passava: “ Zé Pilão!...  Zé-prequeté!”
— Ninguém gosta de apelido. Dino vira uma fera quando é chamado de Dinossauro.
— É tirado a valente, mas não honra as calças que veste. Já correu com medo de Capistrano. Agora finge ser amigo. Fala até em sociedade. E Turíbio Medonho quer participar da sociedade para criar peixe-leiteiro...
— Amarelo, peixe-leiteiro é conversa pra  boi dormir!
— Quem tá amarelo é Onofre! Paldo, paldo!...
— Pálido demais — corrigiu João Velho — talvez carecendo de sangue...
— Tudo por causa de uma mordida à toa que a índia deu na ‘batata’ da perna dele?
— Os bichos se mordem na hora de fazer cria.
Onofre se aproxima a tempo de ouvir o comentário a seu respeito.
— Prosa ruim...
Capistrano provoca.
— E se a índia tiver um companheiro e vier atrás dela?
—  Corto na carabina papo amarelo!
— Você  acha que ele  vem sozinho? índio anda de magote!
— Vai tudo no mesmo saco...
— Calma, meu filho, disse o padre Quirino — índio é criatura de Deus. É preciso, no entanto, passar pela água do Batismo, para se tornar filho, e como filho, herdeiro da graça. Deus ao criar o homem, além da vida temporal, concedeu-lhe uma vida sobrenatural. Mas o homem afastou-se de  Deus por causa do pecado. 
O povo se aglomerou em volta  do padre.
— O momento é propicio para uma confissão comunitária — disse o sacerdote.
 Corina ergue o polegar direito em gesto de aprovação:
— Aprovado.  Churrasco e bebida, só depois da missa — dissera a anfitriã, abrindo um largo sorriso.
— Nunca tinha visto Nhá  Santa  tão feliz — disse Generoso.
— Também eu não caibo em mim, meu cravo — emendou Corina.
Generoso gostou do ‘não caibo’. Mas, não quis comentar. Sabia que Corina tinha bons  modos e se comportava sem vexame, tanto no meio de gente grã-fina, quanto  entre os  mais humildes camponeses.
—  Meu Cravo, não te  parece estranho celebrar missa   dentro de um curral?
— Uai, Corina! E Jesus, nasceu aonde?
O padre postou-se atrás do altar improvisado.
— Alguém tem um berrante aí? Se tiver toque. Vamos dar início à celebração em homenagem a São José dos Vaqueiros.
— E a confissão? — perguntou Corina.
— Junto com a missa. Tudo junto.
O presidente da celebração retirou da batina um pequeno papel onde fizera anotação. E leu:
 
Irmãos e Irmãs, neste mês de novembro, celebramos Santa Catarina de Alexandria. A vida e o martírio desta que viveu no século IV, ainda representa um exemplo de vida a ser seguido. Seu nome se tornou uma escolha comum no batismo, e em sua honra, muitas igrejas, capelas são dedicadas a ela. Agora há pouco, fizemos o primeiro dia da   Novena de Santa Catarina, na fazenda  Lama Preta, aqui pertinho.
 
Olhou, carinhosamente para a assembleia e continuou. “O padre fica feliz ao perceber aqui a  presença de muitos fiéis, que também estiveram lá na capela da fazenda Lama Preta. Sejam todos bem-vindos.”
 
Fogos de artifício cruzaram o céu.
Corina fez a leitura do Evangelho e em seguida padre  proferiu  a homilia.
 
Caros fiéis, acabamos de ouvir o capítulo1,  versículos  de 4 a 7  em que São Marcos apresenta João Batista que vem preparar o caminho do Senhor. Acaso o Senhor precisa que  algum humano  lhe prepare o caminho? João Batista veio preparar o povo, para receber o Salvador. Naquele tempo, muitos vieram ter com João Batista;  confessavam seus pecados e eram batizados. Vocês também estão dispostos a confessarem e se arrependerem dos pecados?  — Sim, respondeu a assembleia, e o padre acrescentou: “ Façamos uma reflexão.  Quem odeia, perdoe. Quem ama, ame mais ainda.”
 
Dita a missa, fogos de artifícios explodiram lá fora. O leiloeiro anunciou: “ Leitão à pururuca, quem dá mais!” Dino arrematou a prenda e ofereceu ao vaqueiro Pururuca. O povo riu. O leiloeiro não entendeu. Entregou ao vaqueiro a bandeja com o leitão assado e ergueu uma compota de doces.
 — Doce de mamão verde! Pesa mais de um quilo. Quantos me dão por esta compota de doce?...
 Generoso apressou-se em oferecer valor alto. A prenda era capricho de Corina, para ser arrematada pelo marido. Dólmen, no entanto,  dobrou a oferta... Batista Generoso acompanhou duas vezes a elevação de preço, e acabou desistindo de arrematar a prenda. Por seu turno, o coração de Venâncio Dólmen, arquitetava planos diabólicos para ofender o anfitrião.
— Esse doce, Generoso não come!
E Dólmen cobriu a última oferta.
— Dou-lhe uma... dou-lhe duas...dou-lhe três... disse o leiloeiro.
 Coronel Dolmênico arrematou a  joia. Simulou tropeçar numa pedra e deixou a compota de vidro cair, espatifando-se no terreiro.
 —Quebrou não pago!
O empregado do Coronel Generoso, não aceitou a ofensa.
— Onça aqui não bebe água, — cochichou ao ouvido de Dólmen: Pague logo o doce e a vasilha. Pague agora, enquanto não resolvo cobrar também o desaforo.
Na mente de Dólmen passou a cena do confronto de Onofre com os ciganos: o velho gajo desfigurado, estatelado no chão, e o sangue escorrendo. Pagou. Venâncio Dólmen pagou.
Doutor  Guimarães despede-se dos anfitriões. O padre também se retirou. Quase que simultaneamente,  dois jipes pegam a  estrada que dá nos montes claros. Devagar, rompem a estrada de cascalho que corta o rio Verde. A poeira levanta, e os faróis mostram partículas suspensas no ar como cascata de areia.
A festa rompe noite a dentro.
 A mulher do vaqueiro sopra a colher cheia de arroz com pequi e feijão tropeiro. Faz ‘aviãozinho’ e põe na boca do mais velho. Três anos tem o miúdo... Dois filhos menores espiam... Ela oferece o peito ao caçula. E ao outro, uma mamadeira de leite mugido.
 Feliz da vida, Corina agradece ao marido pela festa na fazenda.
— Estou encantada.
— Agradeça a  Deus. Depois ao bezerro que morreu para dar vida à onça. Por causa dele, persegui a pintada. E ela mostrou-nos a índia. A índia nos trouxe o padre e toda esta multidão.
— Cruz credo! Que idolatria: agradecer ao bezerro! Nem que fosse de ouro, eu  cometeria tal adultério contra Deus.
— É modo de falar, Minha Flor. Mas, a índia atraiu  todo esse povo.
— Nada disso! Quem atraiu foi Deus. Ele sabe, e pode extrair um bem, até mesmo do mal.
— Pois então! Está justificado o holocausto do bezerro e do touro.
— Que touro?
— O touro imolado para a festa do vaqueiro.
— E isso agrada a Deus?
— Não achas que Deus se compraz com nossa alegria?
— Sim! E também sofre com nossa dor.
Corina não cabia dentro de si.
Há quanto tempo não ouvia ‘Saudade de Mirabela’ executada pelo próprio compositor, e  assim, no terreiro de casa era algo, no mínimo,  inusitado.
 — Manda mais um coco aí,  Zé! gritou alguém na plateia. E Zé  debulhou um cacho de coco atrás do outro.
— O dia é quase amanhecido — disse Corina.
— Deixa a tanga rolar...
— Não estamos na praia, Cravo-vermelho!
— Queres dizer, meu escravo, não?
— Escravo livre. Somos livres escravos do amor.
— O sol já se levanta — acrescentou ela.
— Todo dia o sol se levanta,   Minha Flor!
— Sim, mas o Cravo não vai brigar com a Rosa, vai?
— Nunca!
— Batista!...
— Diga, meu doce!
— Ouço barulho na cozinha.
— São os gatos comendo as sobras da festa.
— Guardei tudo.
— Não guardaste tudo...
Corina sorriu.
— Vai dormir,  Batista!...
O dia era todo amanhecido, e outra  vez, a tarde chega devagar. O sol brinca de esconde-esconde com a lua e a pintainhada se abriga nas asas  da mãe. A natureza dorme. Tudo silencia e novo dia se levanta. Mal cai a tarde, a noite cobre o céu com o negrume de seu manto. A vela tremeluz fantasmagórica e vultos vagueiam na antiga senzala.
A festa acabou ou se despediu até o ano vindouro. Semanas, meses e anos se passam como areia fina a escorrer na ampulheta. Zé Coco ficara durante três meses trabalhando em Campo Grande. Reformou cancelas, fez camelas e carro-de-boi. Depois se foi. Voltou para o Riachão, com boa quantidade de dinheiro no bolso. Até uma rabeca ele fez, mas, esta, foi um presente para Corina que fez questão de aprender a tocar, só para executar a música “Saudade de Mirabela.”  A partir de então, as  noites no alpendre ganharam mais vida. Vez por outro, Corina arremedava com a rabeca alguma  música que o marido tocava.
 Chegou a Sexta-feira da Paixão. Naquela noite,  a prosa se dá na calçada, sem moda de viola.
— Tem dinheiro enterrado na tapera. Tem visagem. Assombração... Pururuca viu uma luzerna — disse João Velho. 
— Pururuca não é certo da cabeça, quem acredita nele?
 — A mãe! A mãe dele  disse que também viu.
–— Mas a mãe de Pururuca morreu.
— Morreu sem libertar a alma que enterrou dinheiro na casa velha. Se ninguém desencantar o tesouro, a alma fica presa nele. Tem que arrancar o cabedal, senão a alma  fica vagando, sem rumo, sem luz, e  sem direção...
— Uai, Nhô! De noite, debaixo do pé de oiticica também se vê luz de visagem vagando... Muita gente já viu.
— Corina disse que é fogo fátuo. Gordura da oiticica ou de algum animal morto.
Pururuca se levantou e saiu resmungando.
— Preste atenção, anacoluto! Isso não é coisa de se contar na frente de criança!
O choro de uma criança interrompe a conversa sobre assombração. “Gêmeos — disse a parteira — índio gêmeo traz mau agouro: um tira a sorte do outro.”  Onofre coça a cabeça... Generoso Batista  sugeriu os nomes  Caim e Abel.  Corina protestou.
— Está louco, Batista! Esses nomes têm sombra de maldição. Abel é assassinado por seu irmão Caim e Caim, condenado por Deus a ser fugitivo e errante sobre a terra.
— Conflito entre gêmeos sempre existiu, minha santa. Será que você não entende que toda nação indígena é descendente de Caim? Quando Caim foi expulso e obrigado a ocultar-se da face de Deus; Caim ocultou-se na mata.
— Esse barco em que navegas  não  te leva à terra firme. Arrenego! Esaú e Jacó, teria mais sentido, pois um dos filhos da índia é muito cabeludo e o outro tem uma lesão  no músculo da coxa. Vai puxar da perna quando crescer...
Nhá Santa passa flanela úmida no móvel do quarto. Ninguém se incomoda com sua presença muda, até que ela dá ‘vassouradas’ na conversa.
— Cosme e Damião é nome bom para gêmeos!
— Sê  besta, Nhá! Não se tem certeza, se realmente, Cosme e Damião eram  gêmeos. Eles tiveram morte semelhante, passaram por igual martírio e talvez por isso sejam tidos como irmãos gêmeos. Pode ser que nem sejam parentes...
Generoso  entendeu que deveria dar nomes a seus bois. Às crias dos outros, seus donos o fizessem. Onofre não opinou. Não escolheu nomes. Só pensou:  “Se Apinajé ainda morasse na aldeia, provavelmente, os filhos seriam sacrificados.  A própria mãe teria que matá-los pela dupla ‘culpa’  de serem gêmeos, além do mais,  um deles tem defeito físico. Para seu povo, um só desses motivos é suficiente para levar à morte um recém-nascido indígena.”
— Tenho medo que Apinajé venha a sacrificar as crias, por serem gêmeas — disse Onofre revelando grande preocupação com sua prole.
Generoso acalma o vaqueiro.
— O sertanista quando  catalogou etnias indígenas que praticam infanticídio no Brasil, não arrolou os maxacalis.
Todos silenciaram.
Nhá levou os meninos para a mãe dar de mamar. Apinajé olhava os filhos, cheia de compaixão.
— O pai não guardou resguardo. Se o pai come  carne vermelha, durante os três meses que antecedem o nascimento da cria, curumim nasce morto ou morre ao nascer. Homem  branco não apanha costume de índio. Até fura as orelhas, come cuscuz, e gosta de aipim. Mas crença, não!  Homem branco não agrada espírito da selva e quando fuma diamba,  não conversa com seus ancestrais. Mata seu semelhante. Ser índio é bom! Acauã é má.  Acauã vai levar curumim para morar com os espíritos da selva.
Corina ergue a voz, lenta e gradualmente.
— Teu ventre gerou duas nações, dois povos divididos pela fé. É preciso que sobrevivam,  para que o bem possa  extinguir  o mal.  Eles são filhos de cristão batizado, com  índia pagã.
— Minha Flor, a índia foi batizada no ritual romano, no dia do casamento com Onofre.
— Ah, sim!
Onofre  mostrava-se preocupado. Coruja rasga-mortalha voou  sobre o telhado, produzindo som semelhante ao de um pano sendo rasgado. Prontamente, respondeu o dono da casa: ‘Aqui não tem tesoura nem pano, não tem ninguém morando aqui’.
— Rasga-mortalha tinindo asas no telhada no dia em que nasce menino, boa coisa não é, disse Nhá Santa.
— Para de conversa tola, Nhá! Isso é abusão do povo.
 Nhá baixou as vistas. E saiu. Não devia discutir suas crenças com Euzébia, cujo  marido morara muitos anos em seminário de padres no Rio de Janeiro e sabia das coisas.
— Nem Jacó nem Esaú. Nem Cosme nem Damião. Meu filho vai se chamar Arualdo. O outro, a mãe que dê o nome — resmungou Onofre, aborrecido.
O que surgiu primeiro era vermelho e peludo. O outro tinha uma perna atrofiada. Teria o irmão mais velho atingido o mais novo, quando este  lhe segurava o calcanhar na hora de nascer?
Desnecessário dizer que Arualdo vingou. Para lidar com caça, vingou bem. Desaparecia na mata sem fazer barulho. Passo macio, miúdo  e ligeiro, chegava com um tatu a tiracolo e trocava por cachaça na venda. Era bom negócio para Jerônimo que vendia a farofa de tatu e ainda contava vantagem: “ Fui eu quem pegou. Peguei  a caça debaixo do bigode da onça. A pintada vinha sentindo o tatu;  os cachorros deram nela e eu saltei na caça.” Dr. Dílson pigarreou. Dona Edna riu zombeteira.
— Neste quadro Dílson também gravou o nome dele.
Jerônimo fez-se de  desentendido:
 — Tive uma ponta de medo.
—Tamanduá-bandeira não tem medo de onça, disse o doutor.
— A mulher do vaqueiro de Generoso, morreu de que mesmo?
— Morreu de parto.
— Mas ela teve muitos filhos.
— Eu não disse que a índia tinha morrido na primeira ou segunda  parição!...
Era verdade. Índia Apinajé chegou a Campo Grande trazendo  um osso humano numa  aió   amarrada na cintura. Inicialmente, pensou-se tratar da  lembrança de seu  último repasto? A suspeita caiu por terra, no dia  em que, ouvindo Zé Coco executar ‘Saudade de Mirabela’,  a índia acompanhou a música, tocando  com aquele osso, que mais tarde se soube tratar-se de uma cangoeira.
— Que é cangoeira, dona  Edineia?
— Preste atenção, Jerônimo! Cangoeira é flauta indígena, feita com osso de um guerreiro, morto em conflito. O pai de Apinajé. Talvez!
— Cruzes! Bicho porco é índio: pôr a boca em osso de defunto!
— Essa farofa é de quê?
— A senhora sabe que é de tatu.
— Cadáver de tatu queres dizer.
—  Cadáver humano  é diferente!
— Para índio, não. Pra eles não faz diferença  comer um bispo ou uma sardinha.
— Não gosto de peixe. Prefiro frango caipira com quiabo e mingau de milho verde.
— Também pudera! Nunca arredou os pés de Juramento! Aqui não tem mar. Não me  venha dizer que recusa uma omelete de sardinha?
— Não como enlatados. Sou mais um feijão tropeiro com torresmo, farofa de andu, ou um tutu, bem feito!
— Peixe é essencial na dieta, por causa do ômega três.
— Entendo essas coisas não!  Como peixe não. Não sei onde ele ciscou. Que andou comendo...
— Sardinha é peixe que vive em águas profundas. Longe de qualquer poluição. O peixe mais saudável, portanto.
Dr. Dílson divagava traquinagens da meninice: o banho  nas águas guardadas na bacia do açude construído com toras de aroeira, por mãos escravas, passando pelas matas ribeirinhas do rio Juramento, aonde se escondia com Jerônimo, para ver as meninas se banhando.
— Em qual planeta habita teu pensamento, Dílson? Volta pra Terra!
—Apenas refletindo, exercitando a ciência.
— Sobre o quê?
— Sobre um fenômeno que ocorre na puberdade com os meninos. Eles desenvolvem “peitinhos” decorrentes da mudança nos níveis hormonais e falam com voz de taboca rachada. É muito engraçado. Vez por outra, uma mãe aparece no consultório, assustada.
— Mas você é ginecologista obstetra.
— A situação é colocada para pedir a indicação de um especialista para o filho.
— Vamos mudar de assunto. Sou pedagoga, não médica.
— Desculpe-me, Minha Flor.
 Distraidamente, Dílson comenta aquilo que antes estava apenas em suas lembranças.
— João Velho é homem de sorte...
— Por quê?
— Euzébia era a moça mais bonita que as águas do Saracura pariram nas últimas décadas.
— Era? Faz quanto tempo que conheces Euzébia
— Desde menina. Nunca  descobri se ela tem olhos verdes ou amarelos.
— Pois sabia que os olhos refletem a cor das vestes.
Fez um muxoxo e continuou.
— Não creio que João Velho seja um homem de muita sorte.
— Ciúme, minha rainha? Raul Soares não gerou, nem as águas do Matipó conceberam e jamais conceberão uma filha que se assemelhe a ti, em beleza, sabedoria e santidade.
— Não queira ser engraçado, Dílson! Falo dos homens que morreram porque  se apaixonaram por  Euzébia. Dois, que eu saiba.
— Nunca soube de nenhuma  viuvez dela. Duas vezes viúva?
— Não chegavam a coabitar. Morriam na mesma noite do casamento.
— Então o casamento não valeu. Nenhum dos dois. Isso parece maldição! Como João Velho saiu com vida?
— Puseram-se  em oração, durante  os primeiros três dias de casados, sem coabitar.
— Até parece que conviveste com eles. Sabes muito de João Velho e Euzébia.
— Muita gente sabe da história de amor que eles viveram.
— Não vivem mais?
— Não sei! Não convivo com eles!
— Disso eu sei.
Doutor Dílson  chamou Jerônimo.
— Vai chover. Traga a conta.
— O doutor vai pernoitar na fazenda Lambari?
— Sim, e preciso ir antes da chuva. Não quero ficar atolado.
Chuva miúda caiu da boca da noite, ao meio-dia. E quando o sol aqueceu o pico da serra, gotas  graúdas em sucessivas cusparadas escorriam na calçada. Sobrepostas, deslizavam, e correriam para o rio.  Cessada a chuva, gavião voa rasante. A galinha chama a filharada. Abre o bico. Reclama. E cobre com suas asas a pintainhada.

***
Adalberto Lima, trecho do livro: "Estrela que o vento soprou", obra em construção para ser publicada em 2020.
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Índia brasileira, araguaia (Google) | Fotografia | Indios brasileiros
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