O cheiro das flores

Gosto de me sentar aos pés desta árvore, à beira da lagoa, e lembrar da minha mãe. É primavera, e ela costumava me trazer aqui nessa época do ano; dizia que era para eu sentir o cheiro das flores. Então eu fico aqui, sentindo o cheiro das flores e pensando naqueles dias. Nós dois a caminhar pela orla, o calor do braço dela sobre meus ombros, a areia movendo-se sob nossos pés descalços e o marulhar suave e ritmado da água que nos acompanhava.

Mamãe gostava de me contar as histórias da vida dela, especialmente as que se passaram à beira desta lagoa. Meus avós também a traziam para cá na primavera, quando ela ainda era uma criança, junto com seus três irmãos, que hoje são meus tios. Vovô e vovó sempre sentados em suas velhas cadeiras de praia, feitas de madeira escura e uma lona amarela encardida. Mamãe abria um parênteses para me explicar o que significava “encardido”. O amarelo eu já dominava, a meu modo. Mas o encardido até hoje é mistério.

Meu avô mantinha-se atento à sua vara de bambu, torcendo para que envergasse, na expectativa de um peixe, unzinho que fosse. Passara a noite preparando a linha, dando uns nós esquisitos nos anzóis e nos chumbos, separando as iscas, conferindo todo o material. Queria ao menos sentir que o trabalho valera a pena, mas raramente conseguia tirar alguma coisa da água.

Minha avó ficava ao lado dele, sempre com um livro nas mãos. Ela adorava ler. Na casa dela havia uma estante enorme, repleta de livros, que cobria toda uma parede da sala. Tinha poesia, suspense, histórias de amor e de terror; psicologia, antropologia, sociologia. Os livros que mamãe lia para mim, à beira da cama, recostada no sofá, ou sentada aos pés desta mesma árvore, ela buscava naquela estante.

Mas quando ela contava as histórias dos livros era diferente. Eu não percebia em sua voz a mesma emoção de quando contava sobre o seu passado. Aquela energia que brotava de dentro do seu coração, como se nos envolvesse, nos conectasse. Essa mesma energia que hoje ainda sinto, mesmo sem a presença dela, pelo simples evocar das suas palavras a ressoar em meus ouvidos.

A lagoa serviu de cenário para muitos momentos da infância da minha mãe. Meu avô concentrado nos peixes, minha avó mergulhada na leitura e as crianças se esbaldando na areia. A mesma areia fria que move-se viva por entre meus dedos e sob a planta dos meus pés descalços. Onde minha mãe e meus tios construíam pontes e túneis, dando passagem às carruagens da realeza, puxadas por cavalos de pelo negro brilhante a galopar vigorosamente em direção ao castelo, com suas torres imponentes, protegido por uma horda de soldados armados com suas longas lanças de gravetos secos e seus escudos possantes, forjados com as mais preciosas folhas mortas.

Quando lhes sobrava mais energia do que imaginação, ela e meu tio mais velho apostavam corrida. A linha de chegada era sempre na quinta palmeira, dessas que cercam a praia, quase beirando a calçada. Meu tio, mais alto e mais forte, deixava minha mãe largar cinco segundos na frente. Com as pernas compridas, ele logo a alcançava. Então ela precisava ficar de olho, virando-se com frequência para ver qual distância ainda mantinha dele. Uma vez, ao virar-se enquanto corria, acabou tropeçando e caindo sobre o braço esquerdo. Ficaram os dois na areia, minha mãe chorando de dor e meu tio rolando de tanto dar risada. Meu avô veio correndo, pegou minha mãe no colo e a trouxe para junto das cadeiras. Minha avó preparou um pequeno saco plástico com algumas pedras de gelo que meu avô trazia dentro de um isopor, para conservar os peixes que ele nunca pescava, e pôs sobre o punho inchado de minha mãe. Os semblantes de dor e de preocupação deram lugar a um compartilhar de sorrisos; a satisfação por terem uns aos outros, pais e filha, cada um desempenhando seu papel naquela história, que não se sabe ao certo quem escreveu.

As histórias da juventude ela permitiu-me alguns anos depois. Uma em especial aconteceu também à beira da lagoa, na primavera. Foi ali que ela foi derramar suas lágrimas, dessa vez não de dor física, mas do coração. O rapaz que ela gostava, e que também dizia gostar dela, havia passado bem debaixo de sua janela, de braços dados com uma moça que acabara de se mudar para o bairro. Minha mãe correu em prantos, os chinelos estalando pelas ruas de terra, levantando um rastro de poeira por onde ela passava. Foi desaguar sua mágoa sentada na areia da praia da lagoa, recostada num ipê repleto de flores amarelas. Ela adorava essa cor. O amarelo resplandecente das flores na primavera, que eu aprendi a apreciar pelo cheiro. Então ela ficou ali, observando o vai e vem das marolas, os pássaros incansáveis a procurar qualquer coisa na areia. Como a vida era cruel e injusta, ela dizia a si mesma entre um soluçar e outro, as lágrimas pousando sobre seus lábios, dando sabor àquele momento de tristeza.

Quando já não tinha mais lágrimas a despejar, reparou num rapaz que caminhava devagar, descalço, na beira da água. Tinha os cabelos bem escuros, cheios e ondulados. Vestia um short xadrez, uma blusa branca e levava um par de chinelos na mão direita. Seus olhares se cruzaram uma primeira vez. Desviaram-se, envergonhados. Voltaram a cruzar-se, agora fixos um no outro. Sorriram. Era o meu pai. Daquele instante em diante seriam separados somente pela fatalidade derradeira, consequência natural de estarem vivos, exatamente como o padre falou.

Se eu pudesse também avistar uma linda moça a caminhar pela beira da lagoa, e ela sorrir para mim, e eu sorrir para ela, caminharíamos juntos na primavera, ao som da água e dos pássaros, ao aroma abaunilhado das flores, e tomaríamos água de coco e sorvete de manga. Mas meus braços não alcançam a beira da lagoa. Se eu tivesse braços tão longos quanto esta faixa de areia, talvez pudesse tocar as bocas que tão longe passam, procurando nelas um sorriso. Mas, para mim, só existe o que está perto ou o que, mesmo ao longe, permite-se sentir.

Não sinto falta da visão. Nem sei como seria tê-la; penso que talvez seja melhor nem saber. Porque quando ponho-me a contemplar a vida na janela, tudo o que sinto e ouço está dentro de mim; está vivo junto comigo, partilhando da minha própria existência.

Um dia meu amor florescerá, como o de minha mãe, na primavera; a tocar-me a pele dos braços, como ela fazia. Enquanto não floresce, descansa, como semente adormecida. Então venho aqui e me sento, a cultivar meu amor através das lembranças e dos sentidos, alimentando-o pouco a pouco, até que a luz, que alimenta as folhas desta árvore, o receba e receba também seus frutos, fortes e sadios, belos como o cheiro rosado das flores e o canto multicolorido dos pássaros. Frutos que hão de sentir a vida tão intensamente como eu sinto.