A Bela Música

Essa história surgiu em maio de 2016. Para os que não me conhecem, lhes apresento-lhes a meu hábito de marcar as épocas em que as idéias chegaram até a minha mente, ainda que demorem anos para chegarem ao destino final: o papel. Á partir de agora, leitores, esforcem-se para sentir a temperatura fria e o céu nublado de outono, outono que, sem querer, promoveu o encontro de Érico e Lorehai quando este, atendendo os pedidos de seu primo Otávio, fora á um bar pequeno e elegantemente embalado pelas canções (nenhuma autoral) do grupo Divas do Relento. As Divas eram três: Lorehai, Michela e Isabel. A primeira se destacava por motivos que nem eu, a autora, poderia entender. Algumas pessoas são assim e outras, como Érico, que era compositor e á tempos procurava pela voz certa para as suas canções, são sensíveis o suficiente para entender e serem atraídas por essa espécie tão rara. Otávio, observando o olhar encantado do amigo, soube que seu esforço tinha válido a pena. Ele, que já era próximo do grupo graças ao affair que mantinha com Isabel e que ambos se recusavam á chamar de namoro e nunca se conformou em ver as composições do primo engavetadas e amontoadas, já vislumbrava o futuro de sua tosca gravadora, conhecida nacionalmente -e, por que não, mundialmente?- como o selo que lançou as Divas do Relento (pensando bem, ele e Isabel teriam que conversar mais tarde sobre esse nome...).

- vamos lá! Disse, ao final do show. - vamos cumprimentar elas!

- vai você, eu espero aqui.

- quer bancar o tímido?

- não conheço ninguém do grupo, vou ficar sobrando e cê sabe!

- pensa que não te vi babando pela vocalista? Vamos, ou te entrego pra ela!

Otávio sabia ser chato quando queria, mas Érico agüentou e foi com o primo ao camarim. Ele não era tímido, mas essa foi a impressão que passou quando se viu frente á frente com Lorehai. Perguntas básicas de artista:

- você gostou da apresentação?

Resposta básica:

- foi maravilhosa!

Intromissão não tão básica:

- Lori! Sabia que esse cara escreve as melhores letras? Verdade! Vê se dá uma lida, uma ajudinha pro poeta sair da toca!

Érico lançou um olhar furioso, e prontamente ignorado, para Otávio. Lorehai se divertiu com o nervosismo daquele rapaz e deu um passo á frente, interessada:

- quer dizer então que você escreve!

- sim, escrevo letras, mas não estão prontas, você não iria gostar...

- por que não deixar essa opinião para mim?

.....

Estamos agora em junho. Não ocultei nada, aquela noite terminou com um sorriso sem-graça e a saída rápida de Érico do bar, seguida de pedidos de desculpas de Otávio e suas piscadelas clássicas para Isabel. E agora lá estava ele, repetindo com o primo aquele chato diálogo de "vamos lá" e "não estou á fim". Como não estou á fim de me estender nessa cena e Érico também não, ele concordou apenas para acabar o assunto. O evento, uma festa dada por uma amiga de Isabel, se arrastou pela noite e Érico, cansado de forçar sorrisos ao ser apresentado á cada pessoa que o esqueceria no minuto seguinte, foi para o quintal e contemplou o terreno ao lado, um barranco cujas gramas apenas não o alcançava por a casa estar a um nível mais alto. Palavras se juntaram e frases foram surgindo. Num ritual, ele tirou um bloco do bolso e escreveu antes que o projeto de letra fugisse. Uma letra sobre solidão.

- trabalhando?

A voz rouca ressoou sobre o terreno.

- acho que sim.

- acha? Um artista trabalha á todo momento. Chata?

- hã?

- a festa.

- só vim tomar um ar.

- vai me deixar ver essa?

- se conseguir terminar.

- estou atrapalhando? Posso ir embora.

- fique, este é só um verso. Precisa de muito mais para se tornar uma letra.

- quando terminar, eu posso ver?

- pode cantar, se quiser. Disse, e se arrependeu instantaneamente

- finalmente! Pensei que iria enrolar mais até me pedir!

- pedir o que?

- todo compositor iniciante quando encontra um cantor pouco experiente logo o imagina cantando as suas músicas.

- você não me parece inexperiente.

- nem você parece iniciante.

- e não sou. Componho desde criança.

- prove-me, deixe eu ler o que está escrevendo.

- desde que você o cante para mim.

Érico entregou o bloco á Lorehai. Na penumbra, ela parecia ainda mais bela. Um choque, um torpor surgiu quando se encararam. "-eu vou escrever uma canção para ela, nem que seja a minha ultima!" pensou.

A voz aguda de Michela quebrou o torpor. Queria apresentá-la a alguém. Lorehai se desculpou e entrou. Minutos se passaram até Érico se dar conta da falta de seu bloco de notas. De volta á festa, não prestou atenção em Otávio e Isabel lhe cobrando explicações sobre a ausência. A encontrou no sofá, ao lado de Michela, o tecladista e outra mulher. Ouviu parte da conversa. A desconhecida se chamava Val, era jornalista e estava interessada em acompanhar o grupo para uma matéria. Seria uma boa janela para as Divas! que á essa altura já haviam encurtado o nome do grupo. Érico saiu antes que pudesse ser visto e ficou andando pela sala, repetindo mentalmente como iria abordar a cantora e pedir seu bloco de volta. Quando se cansou das paredes, perguntou á alguém onde era o banheiro. Não estava com vontade, apenas queria andar. Subiu as escadas e, prestes á abrir a porta, sentiu a mão sobre o ombro e sua canção na voz de Lorehai

- pensou que eu tinha me esquecido? Disse, entregando-o o bloco de notas.

Ele não conseguiu responder, sua boca foi ocupada pelo beijo que ela lhe deu. Fechou os olhos, sentiu os braços finos lhe cercando, abrindo a porta e o empurrando para dentro, sem que nenhum dos dois se lembrassem de acender a luz.

.....

A matéria, publicada 2 meses depois dessa noite, tinha como título "Conheça a Nova Geração de Cantoras", e abordava como um grupo formado por amigas recém-saídas da faculdade e que atravessou três anos escondidos em bares e ofuscado por covers conseguiu seu lugar e se preparava para lançar o primeiro álbum, inteiramente formado por canções originais. Entrevistas, fotos, todas essas coisas que formam uma reportagem. Lorehai percorria os olhos pela revista e lia em voz alta os trechos mais interessantes. Ao seu lado, Érico se concentrava no volante. Estavam á caminho da casa de Michela. Um conhecido de Val havia escutado a prévia do CD e estaria interessado em patrocina-los.

- ele também quer te conhecer, sabe? Dizem que você é a alma da banda!

- só por escrever? Amor, se não fosse por você estaria me escondendo até hoje!

- Érico, você não é incapaz, eu apenas lhe sei um empurrão!

- e que empurrão... Riu, lembrando-se do episódio no banheiro meio semestre antes. Mais sério, acrescentou:

- agora é sério, você me fez enxergar o lado da vida que eu não conhecia, entende? Eu sempre escrevi sobre amigos, paisagens, momentos, e essas canções eram tão vazias!

- não minta, elas eram lindas, todas são!

- agora! Porque encontrei a inspiração que me faltava!

- vai começar aquele papo da grande música?

- a bela música, a sua canção, só sua, que poderá ser cantada por qualquer pessoa e ainda assim você estará lá!

- mas você já compôs tantas músicas para mim desde que ficamos juntos!

- elas são só amostras! A sua canção definitiva chegará!

Calou-se e sorriu. Tinha motivos, coisas mais importantes. Era cedo? Talvez deveriam ir com calma... Ah, besteira! " A Michela também vai se casar, e eles tem menos tempo ainda de namoro" Pensou, enquanto passava o dedo no anel de noivado que ganhara dois dias antes. A entrevista abriria novas portas, e logo ela estaria além dos bares e restaurantes, cantando em grandes palcos e talvez até em um festival. A época dos covers passou. Fitou Érico, terna. Amava ele, sabia que ficaria bem ao seu lado. Começou

á cantar, e assim continuou até chegarem na casa. Estava indo bem demais. Ele se concentra na direção. Algumas letras se juntam, novas palavras, outra música! Ao parar o carro, sacou o bloco de notas e escreveu antes que esquecesse. Ao terminar, contemplou o resultado. Uma música boa, versos grudentos, altas chances de sucesso. Mas não, ainda não é a bela música. Ela não merece uma música fácil, sua deve ser complexa, daquelas que anos depois os alunos lerão em livros escolares, sem saber se é canção ou poesia.

Desceram do carro, campainha, comprimentos. Val os esperava, junto com um senhor algo caricato, o que se espera de um possível patrocinador. Muitas conversas e provocações de Otávio depois (embora ele tenha sido o único que não achará loucura o noivado-relâmpago do primo), foram embora. O patrocínio estava garantido. O próximo passo seria o disco, mas disso Otávio estava cuidando. As Divas! Estavam crescendo.

...

Ele amassa o papel e o joga no monte que já começa á se formar. As pernas doíam, á quanto tempo estaria sentado diante da baixa mesa de vidro de centro? Teria que contar, mas á essa altura aquele era o menor dos problemas. Nenhuma nota era suficiente. Viu o relógio, a gravação deve estar terminando. O quarto CD. Um por semestre, praticamente. Quer dizer, um por ano, se considerar apenas os solos. A música! Outra letra, talvez essa melhore... Não. Rasga mais uma folha. Érico recolhe o monte, talvez alguma sirva. Qual foi a ultima vez que ele terminou uma composição? Será que esta ultima estará no novo disco? Lorehai chegou á comentar sobre a seleção, mas ele nem dera bola. Estava ocupado, criando. Faz algumas semanas... Foi antes da confusão, do escândalo envolvendo Guilherme, o marido de Michela, que fora visto na frente de um hotel aos amassos com alguma fã do Divas!. Pelo que noticiam, devem ter se reconciliado. Ele quase não sai com a antiga turma, o último laço se quebrou, e foi a primeira coisa que ele disse á Lorehai quando esta abriu a porta:

- briguei com o Otávio.

Ela não quis escutar. A desolação era melhor vista: o marido, debruçado na mesa, nem piscava. Arrancava folhas ao ritmo do ponteiro de segundos. Centenas delas, amassadas ou rasgadas, o acompanhavam no chão.

- você perdeu o controle.

Não respondeu.

- Érico! Gritou, enquanto agarrava seus braços, o forçando á encarar sua feição desesperada - você perdeu o controle! Está exagerando! Desde que horas está escrevendo?

- desde as duas.

Eram nove da noite. Lorehai respirou fundo, não podia se estressar. Recolheu os papeis, sob protesto, subiu e se fechou no quarto.

Nunca tivera uma casa com escada, pois agora era dona de uma. Esperava mais. Achava desconfortável, e o desconforto só aumentaria com o avanço da gravidez. Por enquanto, com três semanas, era mínimo. Ele iria saber. E, afinal, porque brigou com Otávio? Na certa o primo também deve ter se irritado com a obsessão pela "bela música", a tal composição inexistente, mas com nome garantido. Estava certa. Tinha que contar. Foi um erro, um desespero... O desespero dera frutos. Fingiu dormir. Ouviu os papéis sendo rasgados. Esperaria ele subir, fariam sexo, sem novidades. E, daqui á alguns dias, quinze, contaria a novidade. Perfeito. O celular tocou, mensagem de Val. Virou o aparelho, o que menos queria pensar era no trabalho. Novas mensagens, desligou o celular e virou o rosto. Aquele era seu sonho, estava famosa, morava numa casa linda... Érico não gostava de lá. Preferia o apartamento. Mais mensagens, cedeu e visualizou. Isabel não poderá cantar na semana seguinte. As crises voltaram e o médico recomendou repouso. Bendita labirintite! Teria que dar conta sozinha, já que Michela aproveitou os cifres para tirar folga! Desligou o celular e afundou o rosto no travesseiro. Logo Érico entrou no quarto:

- vai parecer loucura, mas...

-desembucha.

- podemos nos mudar daqui?

...

Mais um show. Ele havia parado de contar. Tinham acabado de completarem três anos juntos, desde a noite da festa. Fechou os olhos. Batem na porta, a fila está longa:

- Dá licença!" Grita alguém, "-tem mais gente querendo entrar!"

Um banheiro químico é o pior lugar para se trancar, ainda mais no meio de um festival. Ou era isso ou desabaria no corredor, diante dos fotógrafos. Não importa. Não mais. Érico abriu a porta e saiu ignorando os olhares surpresos dos que haviam pagado para ouvirem suas músicas na voz de sua... Nem eu sei o que eles são no momento. Andou até um corredor, deu a volta, entrou numa sala, mais corredores e portas.... O camarim. Respira fundo e abre a porta, se deparando com um rapaz, um ser estranho de olhos claros e cabelos pretos, atrás de uma mulher morena que termina de se maquiar. Neste momento algo se quebra, a mulher se vira para o rapaz, mas ele não a encara. Pega uma garrafa e a atira contra o espelho. O rapaz estranho se despedaça, junto com a mulher que acaba de se virar em direção á porta. Tarde demais, ele correu. Não adianta segui-lo. Lorehai fecha a porta. Não pode se distrair, em vinte minutos subirá ao palco.

Alguns metros longe, Val tenta encontrar o melhor ângulo de si mesma enquanto dribla as sacudidas do taxi, cujo motorista a assiste com impaciência. Assiste tanto que não nota o vulto vindo em sua frente, antes que ele se choque contra o vidro. No camarim, Isabel entra ofegante sem bater na porta, algo que normalmente irritava Lorehai. Ela nem ligou. Estava tão presa em pensamentos aleatórios, tentando conectá-los de forma á conseguir sentido, "Deve ser parecido com compor..." Pensava, que só ao levar um cutucão escutou o que a amiga falava pela quinta vez:

- o Érico foi atropelado, Lorehai. Aqui em frente.

...

Como autora, serei sincera. Originalmente Érico iria morrer. Michela, que á essa altura se separou de Guilherme, convidaria Lorehai para morar com ela nos EUA, onde ambicionava expandir a fama. Isabel ficaria ao lado dela, o que provocaria seu rompimento definitivo com Otávio, que obviamente culparia a quase-ex do primo com todas as forças. E Val se culparia com as mesmas proporções. Mas ao reviver essa história revivi também Érico, o que inevitavelmente mudou todos os rumos.

E voltamos ao acidente, adiantando que só no hospital foi que Lorehai se deu conta do que aconteceu e acontecia. Isabel havia corrido para sua casa, cuidar de Dália, o que a tranqüilizava em relação á filha mas a deixava dez vezes mais vulnerável diante da rajada de flashes que a atingiu quando adentrou o saguão. Tampou o próprio rosto com um casaco e os ouvidos com as mãos, mas não agüentou e se surpreendeu gritando em direção aos predadores:

- nós nos matamos! Eu traí meu marido, o enganei, nos enganamos! Ele fez de mim o que eu nunca poderia ser!

E foi puxada por Michele até alguma sala, ainda gritando. Tudo foi registrado.

Lorehai não saiu do lado de Érico durante o coma induzido, mas deixou de visita-lo assim que acordou. Então foi naquela tarde, três meses depois, a primeira e a ultima vez que se encontravam depois do atropelamento. Ele tentava focar apenas nas caixas empilhadas. O caminhão viria rápido, viria? Ela nunca gostou do apartamento, e naquele meio-tempo finalmente o imóvel decidirá retribuir o desprezo, porém aquela tarde foi o ápice. Parecia que a qualquer momento as paredes iriam prensá-la, ou o teto iria caiu junto do chão. Qualquer das hipóteses era preferível diante da hipótese de encontrar ele novamente, por isso relutou o convite de Michela, que, como dito antes, a chamou para morarem nos EUA, mas depois acabou aceitando. Todos sabiam. Ela não agüentava mais os olhares tortos, se fossem apenas para si até vai, mas para sua filha? A Dália era inocente, um bebê, mas vai tentar explicar para ignorante... Aceitou, tudo pago, viagem marcada. Enrolou até a ultima hora para ligar, esperou que Otávio viesse pegar as coisas antes que o apartamento fosse colocado novamente á venda, mas errou. E agora, o silêncio. Não deveria. É injusto. Ter que se mudar, por causa do assédio dos vizinhos. Se ela teve um caso, e mentiu, e mentiu sobre a paternidade da filha, é problema unicamente dos dois. Como chegaram á este ponto? E como não chegar? Ele também mentiu e traiu, disse amar ela quando na verdade amava o sentimento, aquilo que criara em cima da companheira. Fez dela a musa, colocara-a sem consentimento em um pedestal, tornando-a inatingível para si próprio. Ela não queria a melhor canção do mundo, queria apenas amor, ou atenção. Procurou, não conseguiu, e encontrou, ainda que momentaneamente, em outro lugar. Ele deveria ter parado de compor, ou continuar como antes. Escrevendo o que vinha á cabeça, sem pretensões. Mas acabou. Tudo que lhe resta á o silêncio. Aquela foi a ultima.

A buzina. O caminhão de mudanças chegou. Érico termina de recolher suas caixas, uma a uma, esvaziando a sala até sobrar apenas os pertences de seu par. Lá embaixo, o carro e Otávio aguardando algum sinal para ajudá-lo á descer, o que não foi preciso. A recuperação fora rápida, e ele se acostumou com o braço engessado o suficiente para garantir sua independência. Se dirigiu á porta, algo o fez olhar para trás. Pronto. Se encararam. Ela tenta dizer, o que? Afastou os olhos. Correu para a cozinha, e se encolheu atrás do balcão. Escutou a porta fechar, e o ronco de dois motores. Passou uma ou mais horas, e uma outra buzina tocou. Michela. Ela disse que iria buscá-la. Se levantou, acomodou a filha no colo enquanto se dirigia a sala. Ao pegar a mala, prendeu a respiração. Um bilhete, preso entre o vão das rodas, pega-o. Desdobrado o papel, algumas palavras jorram entre notas musicais. No topo da folha, três delas se sobressaem: A BELA MÚSICA

Paloma Medeiros
Enviado por Paloma Medeiros em 22/08/2019
Reeditado em 22/08/2019
Código do texto: T6726728
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.