Espelho: A descoberta do amor e da verdadeira amizade.
Murilo viu sua imagem refletida no espelho e se assustou. Sem a camiseta e vestindo apenas a calça do uniforme da escola percebeu uma espinha próxima do nariz, ela era horrível. Seu coração disparou só de pensar nas piadas que ouviria caso os outros garotos do colégio vissem seu rosto naquele estado. Apavorado tateou na gaveta algum creme, pomada, enfim, qualquer coisa que servisse para tirar aquilo da cara, mas não tinha. Na gaveta apenas uma escova de cabelo suja, uma caixa com grampos e um vidro cheio de cotonetes. Nos armários nada além de pasta e escovas de dente, sabonetes e desodorantes; abaixou-se para olhar na parte de baixo, mas ali só encontrou toalhas; estava frito caso não resolvesse o problema. Olhou-se no espelho mais uma vez e mais e mais. E a cada olhada parecia que a espinha aumentava de tamanho e mudava de forma; um alienígena parecia querer nascer, e isso deixou Murilo aterrorizado, não havia outra maneira senão usar da maneira casual, os dedos. Com as mãos trêmulas foi aproximando os indicadores da acne, com os olhos apertados de horror espremeu aquilo e viu um liquido amarelado voar e acertar o espelho e em seguida escorrer, sujando tudo.
Desceu correndo as escadas da casa, botou a mochila nas costas, fechou a porta atrás de si, montou na velha bicicleta sem pintura e partiu rumo à escola. Durante o trajeto o visual de sempre; carros saindo das garagens, ônibus se enchendo de gente, mães levando os filhos menores para escola e Murilo sonhando acordado. Chegando lá viu a porta do colégio lotada de gente, a grande maioria de jovens, todos em rodas, rindo e conversando. Murilo desmontou da magrela, colocou-a encostado a um poste de ferro e passou a corrente antes de partir.
Não tinha ninguém na sala de aula além dele. Foi para o seu lugar e ficou ali sentado; a mão no queixo sustentando a cabeça, o olhar perdido no horizonte. Quando a sala se encheu e a professora entrou estava quase dormindo, mas despertou rápido quando um colega de sala atrevido bateu com a mão em sua carteira, Murilo deu um pulo batendo a perna e derrubando tudo no chão; caíram seus lápis, uma borracha e uma caneta de tinta preta. Ficou de quatro patas no chão para recolher seus objetos e teve a mão pisada pelo mesmo garoto. Murilo queria gritar, mas fazer escândalo seria uma péssima ideia. Então se calou, recolheu suas coisas, voltou ao seu lugar e permaneceu em silêncio; ficaria ali até acabar a aula.
Quando o sino tocou os alunos saíram correndo com exceção de Murilo que calmamente foi guardando os cadernos e os livros dentro da mochila. Porém ao sair da sala tropeçou graças a um pé calçado com tênis velho colocado em seu caminho. Caiu e bateu com a boca no chão; sentiu um dente se soltar e rolar feito bola de gude, saia sangue de sua boca. Quando levantou a cabeça timidamente uma orquestra sinfônica de risadas pôde ser ouvida.
Na mesma hora Murilo quis se esconder. Como seria bom ser uma tartaruga e ter a possibilidade de enfiar a cabeça no casco, mas sem essa chance o que fez foi correr. Acelerou seus passos e chegou à bicicleta, retirou o cadeado e saiu a toda pela rua, o rosto cheio de lágrimas. Afundou-se na cama e enterrou a cabeça no travesseiro, chorou como nunca havia chorado antes e soluçou igual uma criancinha.
Pegou no sono e despertou quando ouviu o toc toc na porta, era sua irmã mais velha.
- Murilo. Você está aí?
Houve um silêncio e em seguida um ruído fraco, era o barulho de Murilo se levantando da cama. Ao abrir a porta à irmã o viu de olhos inchados e com uma expressão triste. Ele nada disse, mas seu semblante dizia tudo, mais uma vez, ele tinha sido motivo de chacota dos colegas. E a irmã lhe abraçou forte, e Murilo deitou a cabeça em seu ombro e ele chorou mais um pouco.
- Fica calmo, vamos conversar. – Ela disse fechando a porta e sentando junto do irmão na beirada da cama.
Apesar de estar com quase quinze anos a decoração do quarto de Murilo era muito infantil. Nas paredes quadros com fotos de super-heróis em poses de combate; uma estante cheia de carrinhos achava-se acima da cama. Tudo era tão imaturo. Murilo e a irmã conversaram por horas e saíram rumo ao dentista, pois alguém precisava urgentemente consertar o sorriso.
Quando deixaram o consultório dentário foram tomar sorvete mesmo contra todas as recomendações médicas e foram pela rua cantando uma canção só deles.
- Tá mais calmo? - Perguntou Juliana ao irmão.
- Acho que sim, não sei.
No dia seguinte, Juliana foi conversar com o irmão antes de ir ao trabalho.
- Como está se sentindo? - Ela perguntou. – Conseguiu dormir?
Murilo esboçou um sorriso antes de responder.
- Estou melhor. Dormi bem, sim, obrigado. Só não entendo porque fazem isso comigo.
Juliana pegou a bolsa em cima da cama e jogou no ombro, estava na hora de ela ir.
- Você precisa se impor, Murilo. É por isso que fazem essas brincadeiras idiotas contigo. O dia que você encarar esses idiotas, toda essa situação não existirá mais.
Os dois se abraçaram, Juliana deu soquinhos na cabeça do irmão mais novo e ele retribuiu a brincadeira dando um beliscão no braço da irmã mais velha.
- Quando eu voltar eu desconto o beliscão, deu pra entender?! – Ela falou enquanto ria.
E Juliana foi embora. Ela vestia o uniforme da empresa onde trabalhava; camisa branca e calça azul marinho. Murilo ficaria na casa, deitado na cama com lençol do homem de ferro, olhando para o teto. Quando chegou ao trabalho, mais uma vez atrasada, Juliana ouviu poucas e boas da patroa, novamente ela pediu desculpas e afirmou que aquela seria a ultima vez, no entanto, não seria. Colocou-se em sua posição, ligou o computador e iniciou mais um dia. Ela trabalhava na recepção de um hotel, mas já havia exercido as funções de vendedora, manicure, doméstica e recentemente como recepcionista de um hotel meia boca. Odiava o emprego, porém, precisava sustentar a casa, pois morava sozinha com o irmão mais novo e ele ainda não trabalhava.
Quando voltou para casa encontrou Murilo sentado no sofá com os olhos pregados na frente da televisão, na telinha passava toy story.
- Murilo, isso é filme de criança. Você precisa assistir a programas de acordo com a sua idade.
- Eu não gosto.
Juliana se aproximou, pegou o controle e trocou de canal; um filme de terror com fantasmas surgiu na tela, Murilo toma um enorme susto e começa a gritar descontroladamente; ao perceber ela volta para o desenho, chorando ele sobe as escadas correndo, bate a porta do quarto e ali permanece até raiar o dia.
Quando o sol entrou pela janela, Murilo despertou. Esfregou os olhos com as costas das mãos, calçou os chinelos e se mandou para o banheiro. Ele estava de frente para o espelho, o cabelo despenteado e a cara lotada de sono. Jogou água na face para ver se conseguia despertar. Escovou os dentes, se olhou mais uma vez e não notou nada de errado, ainda bem.
Murilo tinha muitas duvidas sobre ele mesmo. Às vezes, deitado em seu quarto de criança ficava a pensar nos meninos da escola. Não sabia por que isso acontecia e morria de vergonha de falar com a irmã, até que um dia não houve jeito. O coração do garoto quase pulou do peito quando o menino mais bonito da escola olhou para ele. E Murilo não sabia o que fazer e assustado foi se esconder no banheiro, lá dentro estava o menino que de sorriso do rosto falou:
- Oi. Seu nome é Murilo, né? Meu nome é Daniel, tudo bem com você? – Murilo não sabia como responder, a garganta seca e o coração aos pulos.
Lentamente Daniel foi se aproximando. Num momento mágico as mãos dos dois meninos se entrelaçaram; em seguida um abraço demorado, depois veio o beijo, os dois de olhos fechados, Daniel curtindo o momento e Murilo se sentindo confuso. Que sensação estranha era aquela? Por que estava fazendo aquilo? Tropeçando saiu do banheiro e correu, dobrou a esquina do corredor do pátio da escola e sentou no chão, os dedos tocando os lábios e o coração mais calmo, Murilo acabara de dar o seu primeiro beijo.
Chegando a casa ele subiu correndo as escadas e foi ao banheiro, com a porta aberta se olhou no espelho, o rosto corado. Resolveu tomar um banho e debaixo da água escaldante do chuveiro sonhou com o momento. Lembrou-se da mão de Daniel segurando a sua, dos lábios se juntando e de tudo o que pensou naquele instante.
- Murilo. Cheguei! – Juliana havia acabado de chegar do trabalho, cansada se esparramou no sofá, em seguida jogou os sapatos para longe e mexeu os dedos, aliviada.
O garoto desceu correndo as escadas, mas nada falou se jogou no sofá e ligou a televisão, na tela à novela tinha começado.
- Aconteceu alguma coisa? Algum menino te fez alguma coisa? – Perguntou a irmã.
- Não, tá tudo bem comigo, juro.
- Então tá bom. – Disse a irmã enquanto se levantava para ir à cozinha.
Murilo relaxou deitado no sofá enquanto Juliana vasculhava a geladeira a procura de algo para comer.
- Me conta como foi na escola. – Indagou Juliana.
- Nada de mais. – Disse ele.
Na geladeira havia queijo e tomate, no armário tinha pão. Ela começou a preparar dois sanduíches.
- Estou preparando dois sanduíches, você tá com fome?
- Estou sim, vou querer um.
E Juliana voltou para a sala, na mão dois pratos, cada um contendo um lanche. E os dois comiam em silêncio, apenas o barulho da televisão cortava o momento. Enquanto comia a imagem do beijo voltava com força total na mente de Murilo.
- Tudo bem Murilo?
- Sim. Por quê?
- Parece estar sonhando acordado.
Então Murilo respirou fundo, encheu o peito de coragem e timidamente, quase que sussurrando falou:
- Eu beijei uma pessoa.
Quando ouviu Juliana quase se engasgou.
- Como é que é? Quem é a menina me conta?!
Murilo precisou buscar o fôlego novamente, parecia sem ar, o peito pesado e as mãos trêmulas.
- Foi um menino. – Disse ele.
Juliana naquela hora não sabia o que falar. Tudo aquilo era novidade para seu irmão mais novo. Então ela se levantou, foi até o menino e o abraçou forte, Murilo deitou a cabeça em seu ombro.
- Desculpa Jú. Eu....
- Shiiiiu. Não precisa dizer mais nada.
No dia seguinte na escola o mundo parecia ser um lugar diferente, cheio de paz e tranquilidade. As pessoas não olhavam para Murilo com aquele olhar de deboche, as coisas ficariam mais leves a partir daquele dia. Daniel, que estudava na sala em frente à de Murilo se aproximou dele na hora do intervalo.
- Oi! – O cumprimento foi simples, porém, o sorriso foi grande e radiante. Do outro lado do corredor, Murilo devolveu o gesto, seus olhos brilhavam de felicidade.
E mais uma vez foram para o banheiro, longe de possíveis olhares de julgamento e de pessoas que não entendiam a verdadeira essência do verdadeiro amor. E ali, sentados um ao lado do outro conversaram, deram bastante risada e trocaram beijos e abraços. Quando voltou para casa deu de cara com a irmã sentada no sofá, a televisão desligada.
- Não era pra você estar no trabalho?- Ele perguntou.
Juliana virou o pescoço o suficiente para ver o irmão em pé na porta, ele vestia o uniforme da escola, tinha a mochila ainda pendurada nas costas e o cabelo molhado jogado de lado na testa. A irmã demorou alguns segundos para responder e esses segundos pareciam se transformar numa eternidade.
- Era. – Disse ela monossilábica.
- E por que não está?
- Fui despedida. – Disse ela, enquanto lágrimas começavam a rolar em sua face.
Murilo não poderia dizer nada, palavra alguma poderia acalentar a irmã, então ele resolveu dar um abraço nela, um enlace tão puro e amoroso, que Juliana sentiu-se protegida e amada. Murilo não era tão bom com as palavras como era a irmã. No dia anterior, quando confessou a ela ter beijado um menino chamado Daniel, pensou que Juliana falaria poucas e boas para ele, mas pelo contrário, em vez de condená-lo, ela o apoiou, e disse:
- Não se importe com os outros. Não é porque você beijou outro menino que você é diferente dos outros. Isso faz parte da sua personalidade. Uns vão descobrir o mundo mais cedo, tantos, mais tarde; isso é de cada um. – Completou a irmã. Que concluiu. – Você vai sofrer bastante por causa disso, mas saiba que não é culpa sua. Você simplesmente nasceu assim, especial e amado por todos, entendeu? – Depois daquelas palavras as coisas viraram.
Murilo passou a ser um garoto mais seguro. O quarto, enfeitado com temas infantis foi mudado para algo mais de acordo com a sua idade. Os beijos escondidos dentro do banheiro da escola com Daniel se transformaram em passeios de mãos dadas no pátio do colégio, tudo isso sem ligar para nada, era apenas os dois e o amor entre eles. E não demorou muito para Juliana conseguir um emprego novo e ajeitar as coisas, ela estava de casamento marcado e tal fato deixava Murilo feliz, e ele estava feliz.
Deitados na grama de um parque, debaixo de uma árvore, ele e Daniel se abraçaram suavemente. No horizonte o sol se escondia e a lua surgia grande e bonita. Murilo e Daniel se levantaram e de mãos dadas olhando nos olhos do outro trocaram juras de amor eterno; o menino tímido, do quarto de criança que conversava com o espelho finalmente tinha se aceito como um homossexual.