quando o céu e o inferno colidem, parte 2

     “O que?”
     “Fala com ela. Convide-a pra sair, vá se divertir!”
     “Sair pra onde? Não há UM lugar que possamos ir. Ou ficar.”
     “Mas vocês não se encontraram outras vezes?”
     “Sim, e não foi planejado. Esbarramos-nos em todas as vezes. E a primeira vez...”.
     “Não. Eu já estou cansada de ouvir esta história. Chega! Você precisa parar de sonhar, de fantasiar e fazer algo!”
     “Mas eu não sei o que fazer. Tipo, ela está lá e eu aqui. Não tem como planejar algo.”
     “E assim não dá pra ficar. Olha só como você está,” e então eu me encarei profundamente. Podia ver algumas rugas, mas nada de tão exagerado, e as olheiras tão intensas quanto o oceano de sofrimento que eu acabei me afogando. Porém nem sempre foi assim. Pra dizer a verdade tudo isso estava sendo bem recente. Ainda consigo me lembrar do tempo que eu usava flores na cabeça. Meus dias de salada. Sinfonias eram cantaroladas, assobiadas, e minha cor favorita era azul celeste. Com o passar do tempo minhas crenças e gostos mudaram. Sabe, você vê tanta coisa, ouve cada besteira que jamais acreditaria que seriam possíveis de serem ditas, que um dia não há pilar que segure. Tudo cai e você não tem reação porque é assim que o mundo gira. As pessoas são inquietas, indecisas, incontroláveis e egoístas. Sim, egoístas. Todas são. E ao perceber isso comecei a sentir grande repulsa.
     “Você se lembra de quando tudo era mais simples? De quando o sorriso desses seres mortais te revigorava e você só precisava disso?” Sim, eu lembro. Não é algo que se esquece, até porque acontece sempre. Ou acontecia sempre, não sei. Estou meio perdida aqui. Mas sabe de uma coisa?Eu odeio quando isso acontece. Eles não merecem isso. Dizem odiar guerras, mas vivem em conflito uns com os outros. Falam de amor sendo a coisa mais importante do mundo, mas propagam o ódio a proporções colossais. Querem a felicidade, a desejam mais que a própria vida, mas não suportam verem a alegria alheia. Precisam aproveitar a vida antes que algo de ruim lhes aconteça, porque um dia você está bem, andando, respirando, fazendo o que mais gosta, e no outro pode receber a visita do ser pelo o qual eu adoraria me perder.
     “E o que você quer, meu anjo?” Você não tem autorização pra usar tal sarcasmo comigo.
     “Quero ser fodida com força.” Pode ser que é isso mesmo que eu realmente preciso. Uma boa foda. Com a paixão feroz da tristeza em saber que será a última com a pessoa que mais amo. Eu ansiava desesperadamente por isso. Tanto que não sabia mais quem eu era. Eu me perguntava – e ainda me pego fazendo isso – se o que eu faço é o certo. Eu criava, e eles destruíam. Com o tempo isso me deixou cansada. Meus braços, meus olhos, até mesmo minhas costas estão marcados pela busca da felicidade. E esses eles não fazem nada direito. Um bando de animais inúteis. Poucos eram os que me ajudavam a manter uma linha reta de pensamento, mas na minha cabeça sempre vagava o mesmo questionamento.
     “Não. Eles não merecem isso. Não merecem essa dádiva,” eles quebram tudo, transformam tudo em merda. Seus toques são tenebrosos, horríveis. Bondade era tratada como retrocesso evolutivo. Bondade era como uma virgem cristã devota no meio do inferno. Alguns a chamavam até de câncer, e outros eram doidos para fodê-la. Quem era bondoso demais acabava até sendo morto. Físico ou mentalmente falando. A alma perdia a cor aos poucos até que nada mais sobrasse, tirando uma carcaça dura de ser penetrada devido às decepções e maldades que lhe aconteceram.
     “E o que você vai fazer a respeito disso?” A raiva me possuiu após o ponto de interrogação. Era uma perguntava que fazia isso, embora dita debochadamente porque ambos sabíamos que eu nada podia fazer. Minha mente caíra neste lugar novo. A raiva com o tempo sumiu, devido ao silêncio por minha parte e o olhar lúbrico da pessoa a minha frente. Aquietei-me e depois de uns segundos encarando aquela expressão diante de mim eu me sentei. Acendi um cigarro logo em seguida. As cinzas foram caindo em minhas pernas desnudas, mas eu não me importei com isso.
     “Você diz que eles não merecem viver, mas você merece? Olha só o que está fazendo.”
     “Foda-se. E pára de me encher, tá bom? Vá embora, suma. Desapareça daqui.”
     “Não,” disse ela com convicção na voz. Sua confiança estava em alta, e eu sentia inveja demais daquilo.
     “Como assim ‘não’?”
     “Não, ué. Desse jeito. Continuarei aqui porque sem mim você não é nada. Sem mim você estaria no limbo, amaldiçoando e vagando sem rumo, perdida entre neblinas e rochas.”
     “Pára com esse drama. Você não vai ganhar nenhum prêmio com isso.” Mas eu não tirava sua razão. Entre nós o erro caía somente em meus ombros.
     “Você a ama.” Disse sutilmente desta vez. Sua voz escorreu por dentro de meus ouvidos, como a nascente de um rio ou a queda de uma pequena e inofensiva cachoeira. Era a primeira vez hoje que possuía um tom calmo na voz, mas ainda dava para perceber a fúria. E essa raiva eu compreendia, e concordamos de cabeça baixa que a vida humana era injusta demais. Não com todos, não raramente, não em assuntos específicos, mas de qualquer jeito era sim bastante desonesta. Por um lado, sendo esse talvez o melhor, a tal injustiça que falávamos era a salvação de muitos. Não dava para ter tudo o que quisesse, e ninguém também dava algo de mãos beijadas. Recebiam o que precisavam, corriam atrás de seus sonhos para que suas necessidades básicas fossem atendidas. Pelo menos isso. Só que era comum inventar alguma necessidade, muitos faziam isso. Os mais sábios, estudados, concentrados na vida, ignoravam esses desejos. Para esses um simples conforto bastava. E por simples eu digo algo maior do que imaginavam. O homem que tem tudo pode aprender muito sobre importância com o homem que nada tem, se estiver disposto a finalmente tornar-se livre. Alguns eram dominados pelo o que possuíam, e queriam possuir mais e mais. E mesmo assim, volto a afirmar que os mortais sofriam demais com a injustiça. Se eu tivesse o poder de ajudá-los com isso eu com certeza estenderia uma mão. Provavelmente daria meus membros, meus olhos, minha voz e quantos órgãos pudessem para acabar com isso, porém a melhor maneira de ajudá-los é deixar de fazer a única coisa que faço.
     “Sim. É isso mesmo. A maior injustiça da vida é viver.”
     “O que você quer dizer com isso?” Eu afrontava um lugar vazio quando ela perguntou-me isto.
     “Tipo, isso mesmo que você entendeu.” Não pisquei. Meus olhos contemplavam um ponto inexistente criado por minha mente na parede branca daquele cômodo.
     “Mas você não pode parar com isso.” Então pude ver uma expressão horrorizada. Eu mantinha o semblante sereno, embora não passasse de um desejo que eu julgava tão comum quanto ganhar uma quantia exacerbante de dinheiro. Como disse antes, ter tudo o que se deseja é impossível.
     “Você já imaginou o que aconteceria se você não existisse?”
     “Sim.”
     “Então, como a sua ausência aquela que você mais ama também não existiria.”
     “Mas eu poderia viver sem ela.”
     “Não, porque não é assim que funciona. Vocês existem para provar que tudo tem um começo, meio e fim. Se fosse apenas você nada teria sentido. Só haveria o caos.”
     “Como se já não existisse, né?”
     “Não, porque há um fim para tudo. Tanto para coisas ruins quanto para as boas, tudo acaba. Vocês existem um para o outro. Sem um não há motivo para o outro existir. Vocês se completam. E sem vocês nada disso seria possível de existir.”
     “E isso não seria lindo?” Apaguei o cigarro em meu braço. Gostava de fazer isso. Não deixava machucado, nem ao menos doía. Ficava vermelho, depois escurecia e sem eu perceber já não tinha mais nada.
     “Você está louca.”
     “Não," eu disse me afastando daquele lugar. "Você quem está,” e retruquei franzindo a testa. “Você está tão louca que não está me apoiando mais! Só pensa em si mesma.”
     “Eu quem sou a egoísta então?” A ironia voltou para seus lábios.
     “Foda-se.” Lhe dei o dedo do meio. Fui até a cozinha, joguei a bituca do cigarro dentro da pia. Abri a geladeira e bebi um pouco de água em uma das garrafinhas que ali tinham. Dei uma volta pelo cômodo. Duas, três, até decidir o que faria em seguida. Fui até uma das janelas na sala de estar. O lugar era alto, e a vista era horrível. Tudo o que eu via eram prédios e mais prédios, e acima deles tinha essa coisa cinza que cobria o céu. Não sei se era algo cobrindo o céu, ou se o céu aqui era desta cor, mas tudo me parecia mais opaco. Eu não tinha uma companhia se quer aqui, além de mim mesma. O silêncio, a música da vida, ecoava pelos cantos do apartamento. Só que eu não me sentia feliz com isso, mas também não me ficava triste. Indiferente, talvez, é a melhor palavra que pode me descrever agora. Haviam dias que eu me cortava por uma companhia, e emoutros que eu chorava para ficar sozinha, mas afirmo que estar só, comigo mesmo, era muito mais apreciável. Os mortais sim eram loucos a respeito de companhias. Alguns matavam a pessoa que diziam amar fortemente, e justificavam com se EU não posso ficar com ela, então NINGUÉM também poderá, e isso pra mim era nojento. Tinha até quem achasse bonito, romântico, mas era mesmo bem repugnante. Haviam os que se matavam. De qualquer modo, ambos eram idiotas, egoístas e inescrupulosos. E essas coisas só aumentavam minha vontade de sumir. Voltei para o banheiro. Encarei meu reflexo no espelho mais uma vez. Abri uma das gavetas do armário e encontrei uma tesoura, e com isso resolvi cortar meus cabelos. Cansei-me deles, eram claros demais. Senti que precisava mudar, mas com cada mecha que caía eu não me satisfazia. Cortei até onde consegui, deixando o mais curto possível. E então passei uma mão por minha cabeça. Minha aparência continuava um lixo, e eu sabia muito bem disso. Levantei a camisa e percebi que dava para contar minhas costelas sem encolher a barriga. Tirei a camisa e a joguei no chão. Fixei meu olhar em meus seios. Gosto deles. São bonitos, do tamanho perfeito. Minha pele clara brincava com a baixa iluminação do cômodo. Segurei meus seios. As palmas de minhas mãos cambiam bem neles.
     “Olha só pra você, que ridícula. Daqui a pouco vai se masturbar pra si mesma, né? Que decadente.”
     “Não enche.” E os soltei. Fazia calor naquele lugar, entretanto o ar do lugar estava tão cinza quanto o céu lá fora. Até notei minha respiração saindo de minhas narinas. Aquilo me lembrou de acender um cigarro, e então fiz isso. Dei duas tragadas leves e o coloquei na beira da pia. Voltei a me olhar, a analisar cada parte e pedaço que podia, enquanto inalava a fumaça do cigarro. De tudo em mim senti falta de veias. Eram bem visíveis em mortais de pele clara igual a minha, mas acho que não as tinha pois eu tecnicamente não estava viva. E esse era o meu escárnio favorito. Eu, quem levava a alegria, o milagre da vida, não estava viva.
     Peguei a camisa do chão e a dobrei, e coloquei em cima do vaso tampado. Tranquei a porta do banheiro. Sentei-me no chão, apoiei minhas costas nuas na parede, mas coloquei a cabeça entre as pernas ao ter percebido a quão gélida a parede havia se tornado pela falta do sol. Lágrimas caíram e notei que começaram a molhar minhas pernas.
     A questão é que eu gosto também de ficar sem roupa quando estou me sentindo segura em algum lugar, que eu também esteja sozinha. Descalça, sentindo cada tipo de chão diferente que passo, de gramas molhadas a areias secas, pisos gelados e tapetes felpudos.
     Levantei-me da poça que se formara abaixo de mim. O cigarro ainda estava lá, aceso, servindo de incenso para o local. Dei outra leve tragada e o retornei para seu lugar de repouso. Deitei no chão, dessa vez, e fiz de minha camisa um travesseiro. Deitei em posição fetal. Olhei para o cigarro, para suas cinzas no chão, e fechei os olhos.
Cleber Junior
Enviado por Cleber Junior em 14/08/2019
Reeditado em 14/08/2019
Código do texto: T6719841
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