quando o céu e o inferno colidem

     Eu a amo. Mais do que qualquer outra que um dia já amei. E em algum lugar dentro de mim eu sentia a reciprocidade. No entanto, parecia não ser o bastante. De longe seria chamado de convencional, mas meu peito ardia toda vez que a via. E era uma ardência estranha, de desejar sentir para sempre. Queimava-me internamente, e por fora me dava uma agonizante dor ao ponto de querer abrir meu peito e arrancar aquilo que estivesse fazendo tanto dano.
     Diariamente eu tentava me distrair, me ocupando com minhas tarefas, mas nenhum sucesso era alcançado. No trabalho eu conseguia ver seu sorriso nos rostos que encontrava, e achava isso ironicamente estranho. Imaginar seus encantados olhos castanhos escuros me fortalecia para mais um dia, sendo que não era uma força física ou mental. Não era algo do tipo que poderia curar o câncer, porque muito menos curaria um resfriado. Mas de algum jeito eu queria continuar com esta coisa que eu, talvez, poderia chamar de vida. Fantasiando com o impossível. Suas madeixas penetrando o vazio entre meus dedos, e suas mãos tocando, e apertando, os diversos lugares de meu corpo que dobravam e triplicavam este sentimento tão absurdo e bom, era o que eu mais gostava de imaginar. Escrevia até poemas sobre sua capacidade criativa de me amar. Tê-la ao meu lado por toda a eternidade era o sonho que me destruía. Que me triturava de dentro para fora. E eu caía num poço de angústia logo após acordar. Grande parte de mim acreditava que não ficaríamos juntos, devido a tantas divergências entre nós dois, só que eu preferia ficar ao lado dos sonhos. Pra mim isso tudo era fora de meu padrão, fora do normal que eu estava acostumada. Afinal, nós só trocamos alguns olhares e nos esbarramos uma vez. Batemos uma de frente para a outra, e eu quem fui de encontro ao chão. Quando abri os olhos vi a coisa mais bela de todo o universo, e eu já vi estrelas nascerem e morrerem, já vi dezenas de auroras boreais, vi o primeiro crepúsculo e ainda estarei aqui para ver o último. Mas nada disso se comparava ao seu rosto, a fragilidade de inocentes olhos me encarando. Seu braço estendido a mim, um sorriso sem graça em nossos rostos. Ali senti que algo começara a florescer. E desde então, desde esse dia, algo dentro de mim dizia para crer no impossível. Dizia que tudo um dia mudaria.
     A escuridão de meu mundo contrastava magnificamente pelo brilho do dela. Seu toque era o que criava a vida, e era capaz até de rejuvenescer qualquer um que fosse tão sortudo. Os jardins sorriam com sua passagem, e em meus melhores sonhos eu via seu rosto nascendo por uma fumaça mística que ia desaparecendo conforme seus olhos abriam e um sorriso se formava. Era o que nascia lentamente dentro de mim. Queria vê-la, queria ouvi-la. Era o que me fazia ter essas vontades. Tampouco estava familiarizada com isso, me questionando como poderia ser possível. Algo tão mortal assim não deveria estar em mim. Preenchendo-me, me afogando e me alegrando mesmo doendo tanto. A dor, de fato, só me dava sua presença quando não a via e quando minha mente me traía em meus delírios diurnos.
     Contava os segundos desejando sua companhia. Excitava-me por imaginar seu peito contra o meu me aquecendo neste limbo. Queria mergulhar em sua razão através de seus olhos tão escuros quanto meu interior. Houve dias que apenas ter sua voz ao pé de meus ouvidos por uma hora seria o bastante, porque através dos olhos dos mortais preocupados comigo uma hora pode ser considerada uma eternidade. Poderia ser o infinito. E eram tantos preocupados que eu não conseguia descansar durante dias. Não que isso fosse algo necessário, mas perder o sono diversas noites por causa disso já era o bastante para mim. Talvez esse fosse o único lado ruim deste trabalho. A ausência de um bom descanso de vez em quando, me acabando e me deixando com uma aparência cadavérica. O lado bom, entretanto, era poder ver o quão idiota algumas pessoas conseguiam ser. Alguns eram tão corajosos que eu pensava em dar uma segunda chance, porém mesmo se eu quisesse isso não seria possível. Eu não possuía tal poder, ao contrário de minha querida iluminada. Tinha bastante oportunidade, e às vezes alguns trabalhos eram considerados puramente arte. Dava para ver a moldura por em volta das cenas, e foi por conta disso que meu humor mudou drasticamente no segundo milênio. Sendo uma drástica mudança, pois caso não a houvesse, tenho certeza de que a insanidade se apossaria por completo de mim. Mas alguém precisava fazê-lo. Era como a natureza caminhava, e eu não tinha o necessário para impedir. Quiçá um dia eu terei, mas para isso creio que o egoísmo, o medo e a maldade deverão estar extintos. Por outro lado a vida eterna já existe, e para alcançá-la é necessário passar por este período de agonizante dor, medos e crises existenciais que as mentes mais brilhantes conseguiam transformar em arte.
     Dias depois, desses que terminam com um "a", nós nos encontramos. Estávamos em um hospital. Linda, perfeita, como sempre. Meus olhos brilhavam ao que ela se aproximava. Só que nada fizemos, além de nos abraçarmos por míseros minutos e sussurrar um suspiro ofegante uma no ouvido da outra. Fomos de mãos dadas até a maternidade, e lá nos separamos. Entramos em salas diferentes, mas pude ouvir seu milagre acontecer. Comigo as lágrimas eram diferentes. Não vinham sorrisos e o clima escurecia. Mesmo sendo impossível de me ver eu sentia os olhos me arranhando. A água que cobria as bochechas, que descia pelos olhos, era capaz de afogar a alma dessas pobres criaturas. Deprimiam-se de desespero e se desesperavam de depressão. São sentimentos lindos, pois mostram o quão vulneráveis e frágeis geralmente são. E eu os invejo por isso. Porque sei que jamais serei assim. Demasiada humana. Quando saí do quarto ela já tinha partido. Fiquei parada observando o corredor por onde caminhamos de mãos dadas e de repente notei que meu rosto se molhara. Não ele todo, apenas nas maçãs de meu rosto – igual como as pessoas minutos atrás dentro da sala. Foi naquele momento que descobri que também podia fazer aquilo, que não era um monstro afinal de contas. E doeu. Bem mais do que tudo o que já me doera antes. Toquei o chão com meus joelhos. Diziam que chorar fazia bem, diziam que a dor se apaziguava. Só que o que aconteceu foi o contrário da paz. Posso dizer que meu trabalho tornou-se difícil de ser feito após estes acontecimentos, e essas coisas que surgiram em mim. Eu enxergava as almas dos que partiam, claro. Andavam ao meu lado, eram guiados por mim até seu último destino, e lá – e durante todo o caminho – me amaldiçoavam. Para minha alegria nem todos eram desbocados e infelizes. Esses me agradeciam, e até passavam a estadia em paz. Recebiam mais chances de voltar ao mundo do que os que me dirigiam ofensas. Sempre foi assim. E a ironia não parava aí, porque eles negavam as chances. Alguns até aceitavam, e voltavam em outra forma. Uma que pudesse explorar as belezas do planeta de uma forma diferente, que fosse capaz de descobrir a bondade do ser humano, mesmo que ficassem por menos tempo do que da ultima vez. Eram esses que eu admirava porque tinham força o suficiente para tentarem novamente, e mais criativos para fazerem de um jeito todo diferente. Entretanto, no fim do dia tudo o que eu queria era um abraço daquela mulher, e ouvi-la de que tudo iria ficar bem.
     A tristeza de um amor impossível tomou conta de minhas entranhas, e quando isso aconteceu eu desejei nunca tê-la visto. Desejei profundamente nunca ter tido contato, porque sua ausência escurecia tudo ao meu redor. Ela tornava as coisas escuras demais para serem vistas. Só que essa dor, esse incômodo que me deprimia, era a prova de que eu conseguia sentir algo. Eu não era essa espécie de demônio, praga ou fatalidade que muitos diziam. Sendo assim, após algum período indeterminado de dolorosa reflexão, eu me dei conta de que aquela era uma bela dor. Mas como algo tão lindo e puro era capaz de machucar desse jeito tão profundo eu jamais iria descobrir.
     Não lembro direito que dia, ou que momento, o a seguir aconteceu, mas lembro que foi entre um clarão de luz e um fim de túnel que a vontade de largar tudo foi forte. Eu gostava de dizer que daria minha vida pelo anjo que se tornou dona de meu amor, mas a vida para mim nada significava. Nada era. Em relação a ela, eu desistiria fácil da imortalidade. A daria para quem realmente fosse merecedor, quem poderia fazer mais do que eu já fiz. Do que adianta possuir vida eterna se sua única companhia era a solidão? E as lágrimas de minha tristeza não somente molhavam meu rosto agora, mas também quem e o que estivesse ao meu lado. Só que o efeito era o contrário. As flores desabrochavam e a grama ficava menos verde, o céu se acinzentava e as crianças corriam para as ruas. Mas que inferno! Posso jurar que uma vez vi um arco-íris bem acima de meus cachos.
     E essa história, esse drama todo, fazia com que eu entendesse o porquê dos mortais se mutilarem. Os cortes nos braços não eram apenas para o sangue sair, mas principalmente o veneno que neles corriam. Um veneno que causava dores no coração. O suicídio chegava quando a dor já havia passado dos limites. Quando ela impedia as outras emoções de serem sentidas. Quando a graça de sentir a dor já tivesse sido perdida. Quando tudo tivesse sido bloqueado, para que as lágrimas, no final, lavassem a alma e curassem os cortes. Era o que geralmente eu ouvia quando visitava algum hospital psiquiátrico. Gritos desesperados e confusos, paredes com marcas de arranhões, assobios de músicas carnavalescas sendo que não havia ninguém fantasiado. Era somente a palidez presente. Cabelos bagunçados e olheiras tão profundas quanto o longo infeliz tempo que o dono delas foi esquecido ali. Esse era meu lugar favorito. Fazia-me sentir bem. O raro e gostoso apreciado silêncio, as paredes neutras dos cômodos e a incrível sensação de estar rodeado por gente que realmente te entende. Sim, o lugar perfeito. Gosto de visitar os lugares quietos também, mas por ser desse jeito que eu mais visitava eu acabei por preferir o barulho. Uma canção de heavy metal no volume máximo me deixava viva. Só não tão viva quanto o toque de minha amada. Pensar nela era inevitável. Tudo ao meu redor ligava meu cérebro ao seu nome ou às suas características. Das físicas às mentais, e eu quase nada sabia sobre seus gostos naquele tempo. Sim, foi amor à primeira vista. Paixão ao primeiro toque. Vício ao primeiro beijo.
     Nisso, nosso primeiro beijo foi o que me acordou de vez do mundo de sonhos que eu estava constantemente presente. E pensar nele deixavam minhas pernas bambas. O ar saía de mim e as tremedeiras em minhas mãos ameaçavam a conclusão de meu trabalho. Nosso primeiro beijo não foi tão empolgante quanto o segundo ou o terceiro, pelo simples fato de não ter tido língua. Esbarramos uma na outra. Eu caí, ela estendeu o braço para mim e me levantou. Foi nesse esbarro que nossos lábios se encontraram. Lembro-me como se fosse ontem. A maresia preenchendo nossos pulmões, garotas andando de patins na ciclovia ao lado das areias e caras brincando com bolas de futebol tentando impressionar as moças. Cabelos brilhantes e o sentimento de que a vida era justa o bastante com os mortais. E com certeza a vida é muito justa com eles. Apaixonam-se diversas vezes, alguns casavam e outros se tornavam famosos. Existiam muitos falsos, condescendentes, e mimados e rabugentos cheios de si, porém por incrível que isso possa parecer eram esses que traziam graça ao meu trabalho. Agora os apaixonados pela vida, os loucos que flamejavam em aventuras, corajosos que romantizavam tanto que pareciam mais cínicos do que como acabei de descrevê-los, esses sim eu sentia pena e até remorso de levá-los comigo. Não gosto dos que me agradecem, não acho certo. Enquanto alguns queriam deixar de viver, ter uma vida era o que eu mais queria. E ter uma vida somente ao lado daquele ser que fez brotar o amor dentro de mim (neste momento consegui descobrir o que era aquele algo que nascera em mim tempos atrás). Assim que eu me sentia. Assim que eu me senti desde a primeira vez que nossos lábios se encontraram. A segunda vez foi melhor, com toques em lugares sensíveis que eu não fazia ideia da capacidade que tinham. A terceira também me trouxe surpresa, mas isso não era o de mais importante. Apenas sua companhia era o que eu desejava.
     Ela gostava de me presentear, porém perdiam o brilho quando ficavam muito tempo comigo. Eram sempre flores. Rosas, orquídeas, margaridas, lírios, meu lugar se tornou bastante colorido por um tempo. Infelizmente não durava tanto. Morriam muito rápido mesmo eu cuidando bem. Na primeira vez vinham com instruções, mas mesmo assim perdiam a cor em uma velocidade absurda. Talvez fosse culpa minha, talvez eu não prestasse para ter vida em minhas mãos, em meus cuidados. Os meus presentes também não eram dos melhores. Já cheguei a lhe dar uma ampulheta – eu tenho este estranho fascínio por relógios. Também mandei alguns de meus CDs e livros favoritos. E quadros também. Obras que eternizavam as culturas, a humanidade em si. E ela sempre me mandava flores. Das mais comuns as mais raras. Das mais feias as mais belas. Pequenas e imensas. Trocamos cartas também, porque era assim que ela sabia do estado das plantas. E até sua letra era perfeita. Era redondinha, charmosa, como se escrevesse com calma e dedicação, com confiança de que tudo se resolveria e daria certo, enquanto a minha letra era trêmula e nervosa. Ao meu ver nada se resolveria, pelo menos não do jeito que gostaríamos. Ou do jeito que eu gostaria. Entretanto, algo dentro de mim, num lugar que eu jurava não existir luz, continuava a me dizer para insistir. Para eu não deixar a chama apagar. A chama que ela acendeu ao me beijar. E ela me dava esperança, mesmo sendo nociva, ardendo severamente de saudade.
     Foi esse desastre emocional que me ensinou que o amor realmente matava. Tanto a falta quanto o excesso deste belo sentimento poderiam levar a fins trágicos. E nesse fim que eu me encontrava diversas vezes, puxando os infortunados para a minha solidão. Para a paz eterna. Algo que não funcionaria para mim. Minha dor só iria acabar quando finalmente estivéssemos juntos, porque o que está já está morto não pode morrer.
     
     “O que você vai fazer?”
     “Essa é a pergunta para a qual eu não faço a mínima ideia de qual seja a resposta,” respondi. “Mas estou procurando. Sempre que possuo um tempo livre eu vou atrás desta resposta.”
     “Você deve fazer algo logo, minha amiga.” Ele deu uma longa tragada.
     “Por que você ainda continua com este horrível vício?”
     “Por que eu iria parar? Afinal, já estou morto.”
     “Talvez por que foi isso que te matou?”
     “Tanto faz.”
     Levantei-me do banco. “Tenho que ir,” disse olhando para o objeto nojento em sua mão. “Foi bom conversar com você.”
     “Estou à sua disposição.”
     E andei sem olhar para trás, mas prestando atenção no quão bonito o dia estava.
Cleber Junior
Enviado por Cleber Junior em 13/08/2019
Código do texto: T6719419
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