Aquela música...

- Já ouviu o novo cd do Metal Pancada? É destroçador!!!

- Ouvi sim! A faixa 14 é espetacular.

- Prefiro a 10.

- Não, a 14 arrepia até os pelos da alma.

- E a 10 te faz viajar ao infinito...

E assim a discussão perdurou por horas e acabou com muitos beijos e o cd tocado umas dezenas de vezes seguidas.

***

Vinte anos mais tarde, Praça Saudosa:

Ana caminha com ar de cansada depois de ter percorrido todo o centro da cidade em busca de material para concluir um trabalho.

Pensou que seria uma boa sentar um pouco e respirar. “Um caldo de cana um com pastel de carne cairia muito bem agora”, pensou, e dirigiu-se ao famoso Leão do Norte. Fez seu pedido e voltou à praça para apreciar seu lanche clássico enquanto observava os transeuntes e sentia o vento vespertino bater-lhe no rosto.

Viu o velho cinema, viu os idosos que conversavam sobre tempos de outrora, viu os pombos sendo alimentados por solitários, viu o entra e sai nas lojas já renomadas, viu os jovens... Ao se deparar com estes, sua vista mirou no local onde vinte anos antes funcionava uma loja de cds. Lembrou do último que comprou; era pancada! Literalmente! Sorriu com saudosismo.

Ligou o celular e ativou o Spotfy. Ouviu a faixa 14 do dito disco e achou que ela era realmente muito boa. Ouviu mais uma vez, mais uma e mais uma. A batida era deveras arrepiante. Ficou com os pelos eriçados. Nos lábios, o esboço de um sorriso resplandecente. Por dentro gargalhava. Nos olhos, a umidade da nostalgia.

Não se sentia triste. Sua vida tinha dado uma guinada e tanto. Suas escolhas a levaram para rumos diferentes do que imaginara. Mas diferente não significava que tinha sido ruim. O fato é que sempre que batemos de cara com o passado ficamos a imaginar como teria sido se tivéssemos feito outras escolhas. Com ela aconteceu o mesmo. Durante o tempo em que repetia incessantemente a música, divagou pelos caminhos do “e se”...

Esteve tão absorta em seus pensamentos que não reparou no senhor descontraído que puxava conversa ao seu lado.

- Deve ser muito boa a música que escutas.

- Como?

- Não é música que estás a escutar? Há tempos não vejo uma pessoa rindo sozinha durante tanto tempo com os fones no ouvido.

Olhou surpresa para o seu interlocutor. Seu coração deu saltos tão gigantescos que ela pensou que talvez tivesse que engoli-lo para ele voltar ao lugar. Por um momento pensou ser outra pessoa, mas como poderia ser? Seria muita coincidência, uma cidade tão grande... Realmente não era. Só lhe restou responder à pergunta lançada.

-Sim, sim, é uma música. E das boas. Há muito tempo eu entrei numa discussão infindável sobre ela. Hoje preciso admitir que a pessoa tinha mesmo razão, essa música é contagiante.

- Nunca é tarde para reconhecer um equívoco, não é mesmo? (Risos).

- Com certeza! (Risos). Com licença, preciso ir andando.

- Toda.

Despediram-se com simpatia. Ela caminhou distraída ainda com a música no modo “replay”. Balançava a cabeça, fechava os olhos para seguir a onda lírica e sorria. Não reparou na lixeira de concreto à sua frente. A trombada foi tão forte que celular saltou para um lado e Ana para o outro. “Que vergonha, que vergonha”, repetia em pensamentos com os olhos fechados. Sentiu uma mão no seu ombro e uma voz aveludada.

- Você está bem?

Quando abriu os olhos mergulhou no mar do passado de tal forma que quase se afogou.

- A... a-quela... aquela música...

O mar do passado chocou-se com a turbulência de uma tempestade antiga e choveram lembranças.

- Ana? – Ele balbuciou surpreso.

- Oi, Nico. – Sorriu desajeitada.

Ela recolheu o celular, arrancou os fones e a faixa 14 começou a tocar alta e em bom som.

- Você tinha razão, Nico. A faixa 14 é melhor que a 10.

Ele sorriu placidamente.

- Ah, Ana! Eu escutei essa faixa 10 durante vinte anos, viajei infinitamente tentando te encontrar só pra te dizer que você é quem tinha razão.

Ergueram-se e perderam-se na imensidão de um passado que sempre esteve presente dentro de ambos. De mãos dadas, a correnteza agora rumava para o futuro.

Aline Teodosio
Enviado por Aline Teodosio em 09/08/2019
Código do texto: T6716490
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