Pareceu castigo

O calor da rua de calçamento me atormentava, embora já fosse noite, o calor permanecia ali. Terceiro dia de carnaval, Salvador, Bahia, as ruas já entravam no processo de esvaziamento. Era a hora do até mais, já que ainda haveria um quarto dia.

Eu não sei o que fazer, sigo parado no coração do campo em frente ao farol da Barra. A Barra sempre me envolveu com o por do sol seguido do luar que insistia em tocar o topo do farol e do meu coração. Às 16 horas de ontem, eu conheci alguém que decidiu se sentar ao meu lado e se envolver, também, daquela energia. Cabelos castanhos, olhos meio amêndoas, grandes, me agradavam. Eu, cabelo preto, havia cortado quando me ocorreu de uma crise de coceiras, estava quase careca. O olhar curioso e, ao mesmo tempo, atraente se repetia sempre que eu não era cuidadoso com os meus olhares. Vestia uma regata de ombreiras rasgadas e amarradas a próprio punho, um calção "jeans" e a alpargata da Havaianas, já gasta das lavagens. Enquanto admirava, eu não percebia nada, senão tudo o que era vivente.

Já tardava as 17 horas e eu permanecia faminto, taciturno, olfateando o crepúsculo, a maresia me trazia vida. Eu era observado. Buscava em mim, ali, o coração ardente, como uma puma que se esforça na solidão do breu. Surgiram as primeira palavras;

- Gostei do colarinho. [escutei]

- Eu teria feito diferente se minhas habilidades me permitissem. [repliquei]

- Eu não teria gostado tanto, certamente. [ouço e olho]

O sol que já ia indo no infinito, avisava que a noite poderia trazer uma energia diferente. Eu já não era o objeto observado, mas o que observava. Permanecia-se uns gritos aturdidos, espalhafatosos, pareciam nos cercar, mas era só mais uma das peripécias dos ventos. O diálogo retoma;

- De onde você é? [pergunta]

- Do Ceará, mas meu coração é daqui. E você? [respondo mexendo em alguns ramos das gramas que ali estavam próximas, seguindo de um olhar lateral]

- Sou de Bahia. Pergunto-lhe por seu jeito. O axé me agrada, sinto em ti a sintonia que sempre procurei. [responde olhando em direção para o mar]

- Eu não sei se eu consigo conhecer mais alguém, tudo é uma confusão. [digo em troca]

- Eu não disse que queria conhecer você. O nome para as festas me seria suficiente. [contesta, rindo suavemente]

- Sua perspicácia também me atrai, mas não quero ser incisivo e nem invasivo. [digo, e não sei nem porquê]

- Mas todo começo é incisivo não é mesmo ? [me direciona a pergunta]

- O que achou do dia ? [pergunto, mas não respondo a que me foi direcionada]

- Vazio, desde o primeiro dia, diverti-me, mas me falta o íntimo, não gera escrita, então foi vazio. E você, o que achou? [só responde]

- Exatamente para isso que me sentei aqui. [respondo]

A gente conversou por um tempo, a noite já havia chegado, as ruas estavam vazias. Era quase 22 horas, havia algumas poucas pessoas, ainda da festa que por ali passavam. Dentro da conversa, convidei para vir para o meu quarto, estava hospedado em um hotel a uns 10 minutos de carro dali, no Rio Vermelho. Por ali a noite ia a toda tona, eu no entanto, não sabia no quê pensar. Talvez estivesse impressionado.

A pessoa misteriosa teria estudado Biologia na UFBA, além de ir para a sua terceira língua e eu havia dito que tinha começado os meus textos e que não conseguia sair do inglês. Mas que conseguiria alguma literatura interessante.

A noite foi caindo, as paredes para a rua do quarto de hotel era de vidreiras, todos transparentes. Eu me sentia exposto, ao passo que aquela exposição também me excitava de quando em quando.

Tiro o calçado, apoio a chave no chaveiro, fecho a porta, quando ouço:

- Eu transei hoje com um rapaz. [dispara, com timidez]

- Mas... é que,... qual o problema? [pergunto, confuso]

- Acho que a gente está aqui por algum motivo não? [pergunta]

- "Enquanto o amor destrói suas constantes e derruba as suas torres de enlevo e brancura, não serei eu o que vai dizer o que é amor." Acho que Neruda diria isso para esta pergunta. [respondo, indo ajeitar as cortinas]

Enquanto puxo a alavanca, sinto duas mãos nas minhas costas... Desciam dos ombros até a lombar... Eu só conseguia respirar, provisoriamente. Delicada, as mãos que me alcançavam da nuca até as partes laterais de minhas coxas, me delineavam, quentes, tenras, suaves e deliciosas.

Apesar de tudo, não saia da minha cabeça as pessoas com as quais eu havia saído hoje e ontem, sem ter sentindo, minimamente, o que estou sentindo agora.

As mãos que me percorriam o corpo, esfogueteado, arrepiado, me iam descobrindo, pouco a pouco, cada parte do meu corpo... Os braços, levemente definidos, as mãos com algumas veias saltadas, os poucos pêlos expostos no meu peitoral, minha cintura, meu pescoço e ombros, a nuca. A habilidade desenvolvida de enlaçar a mão por entre as vestes me faziam não saber quem eu era ali. Eu permanecia de costas, estático, paralizado e excitado. Extremamente excitado.

Aos poucos, evidentemente, me foi retirada a blusa, com toda suavidade possível. De olhos fechados, sinto um corpo me abraçar, não qualquer corpo, mas aquele corpo que insistia em se aproximar, cada vez mais, de mim. Com o corpo abraçado ao meu, percorriam-se as mãos, do meu pescoço, alisando tudo o que fosse tocável, descendo, até que me fosse retirado o short "jeans" surrado, também. Sua roupa já estava aos frangalhos, uma puxada já extirparia o que ainda permanecia envolvido ao seu corpo.

Nenhum amor único ali me enxeria o gozo quanto aquele. Coloco meu corpo contra as vidreiras protetoras do abismo, e me debruço sobre o deleitar, blândulo, trêmulo, do corpo moreno esfogueteado marcado pelo sol. Tudo ali era tesão, tudo ali era gozo e mel derrubado.

Alguns insistem em mal saber escolher o escárnio necessário, eu dito o puro sexo, a selvageria, o gozo deturpado, a trepada sem precedentes. Eu vivi o eu e o tu juntos, delirantes, demorados, com dor, com sabor, com calma, com calor.

Os corpos morenos insistiam em se roçar e selar o silêncio do gemido guardado e indelével.

Os beijos na boca, de boca e de alma. A saliva ardente, gotejava o óleo do pecado e do desejo, eram todos os beijos o combustível daquele amor.

Não havia mais nada, nem ninguém, nem sexo, nem nada, senão prazer e clímax. Das mais diversas porções, e nas mais diversas posições, o gozo foi derramado. O grito, ora grave, ora agudo, o gozo ora forte, ora trêmulo, ora interno, ora externo, ora tudo, ora nada, incendiava aquele quarto de hotel que insistia em manter para nós aquele sexo quente, forte e selvagem.

Já eram 5 da madrugada, quando eu tomava banho. Água quente, sabonete líquido. Às 5:30 quando saio, tudo está muito silencioso.

Era o fim. Já não tinha mais ninguém ali.

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Da mesma forma como foi intenso o desenrolar, foi intenso o meu abismo. Para mim, as vidreiras estilhaçaram por não nos aguentar e dali eu caí.

Pego papel e caneta, coloco o fone de ouvido, saio para caminhar na praça próximo da avenida central do Rio Vermelho com Ondina.

"É difícil de falar dessas relações, eu sou de outro tempo.

E tanto sentimento, guardado para nós dois. Somente nós dois.

Se eu só tivesse hoje, somente hoje, para eu poder te amar de novo.

Beijei-te ontem a noite, mas acordei sozinho."

A música da rádio me faz parar, sofro a ausência, mas sinto vivo a energia desse amor no meu coração.

O amor é isso mesmo, o combate de relâmpagos e dois corpos por um só mel derrotado. Talvez, somente talvez, Neruda dissesse isso para esta situação...

Benjamim Alves
Enviado por Benjamim Alves em 30/07/2019
Reeditado em 30/07/2019
Código do texto: T6707850
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