A MÁSCARA DA VERGONHA

De repente, ela se deu conta de que seu conto de fadas havia acabado. Foram longos anos, controlando e planejando a vida de quem escolhera para dominar. O seu mantra, nesse período de anos e anos, foi o de que jamais fizera algo que pudesse desabonar a sua conduta fiel e abnegada de todas as horas. Repetia isso sempre que tinha oportunidade. Era, na verdade, a sua oração de penitência por saber não ser possuidora dessas virtudes tão ímpares e que somente as grandes mulheres, tipo Amélias, Julietas, Rapunzéis, conseguem ter e ser.

Olhou-se no espelho, de esguelha, e viu a máscara da falsidade sendo retirada de sua pele como numa metamorfose de renovação, de purificação da alma. Sentiu uma necessidade enorme de gritar, de xingar-se, por ter sido tão estúpida ao ponto de pôr tudo a perder num simples detalhe de autoconfiança, de manipulação, que estava acostumada a fazer todas as vezes em que podia e sentia necessidade de brincar com a sorte e com suas fantasias.

Tocou-se no rosto. Estava marcado pelos vincos da vergonha e do arrependimento. Como tinha sido tola ao querer investir em algo que, de antemão, sabia, nunca iria dar certo. Trocara, no caso, o certo pelo duvidoso e, pior ainda, acabara por se revelar ao outro uma pessoa sem escrúpulos, capaz de armar suas teias em prol de seus escusos objetivos. Uma pessoa sem moral e totalmente desprovida de sentimentos, que se adequava à situação para garantir perpetuidade em suas metas de controle e condicionamento.

O espelho, como se quisesse impor a sua penitência, refletia a imagem de uma mulher já castigada pelos anos, que começava a se tornar burlesca em querer permanecer, ilusoriamente, no viço da juventude, relacionando-se inapropriadamente com pares bem mais jovens; vestindo-se inconvenientemente para a sua idade e usando pintura densa, sem se dar conta de que, por onde passava, provocava olhares e risos cínicos de personagens que souberam esperar o momento de poderem, justamente, vingar-se de seus comentários ferinos de outras épocas.

Ela, parecendo sentir o que o grande espelho do seu quarto queria lhe dizer, chorou. Porém, não foi um choro de contrição, mas sim, um choro de raiva, de rancor. Aquelas lágrimas representavam o custo de vários anos dedicados a articular, manipular, controlar e conduzir os caminhos daqueles que lhe estavam próximos. E olhando o espelho, ela entendeu que não podia culpar ninguém, não podia atribuir a ninguém o seu deslize. E, por isso mesmo, é que sua raiva se manifestava em forma de ódio.

O quarto parecia, a cada vez que ela se via multiplicada no vidro do espelho, mais sombrio e mais distante da sua atual realidade. Bem que tentara reverter o que, inicialmente, achava ser fácil de ser revertido. Depois, com o passar do tempo, percebeu que tinha, de fato, cometido algo grave, sério, para uma cumplicidade. Tentara o esquecimento, o passar do tempo. Baseou-se no velho ditado de que “o tempo cura todas as feridas e apaga todas as imagens” e torna o acontecido como algo que “possivelmente não aconteceu” e que o mais certo é o princípio da presunção de inocência.

Sim, ela tentou isso, lembrou-se. E não foi só uma tentativa. Mas não deu certo. Por isso, mais uma vez a raiva tomou conta do seu rosto, diante do vidro espelhado do seu quarto. De repente, a sua autoestima foi abaixo. Sabia que suas alternativas de se sair por cima de tudo aquilo, que acontecera, era o de nunca se revelar tal como era na sua essência. Se fizesse o contrário, se resolvesse trocar de pele, mostrar-se para o mundo como de fato se via ali diante daquela testemunha que reproduzia sua imagem de carne e osso, o que iam ver, na verdade, era uma pessoa inescrupulosa, capaz de tudo para atingir seus objetivos.

Finalmente resolveu se vestir. Pôs, primeiro, a lingerie cor de nunca haver inaugurado e, depois, passou o hidratante, à base de óleo, nas pernas e nos braços. Em seguida, pôs o vestido azul tomara que caia, de festas, com uma abertura lateral na coxa esquerda - que ia até perto da cintura -, maquiou-se exageradamente, escondendo os anos que tinha, borrifou o perfume francês para ocasiões especiais, passou a escova nos cabelos já grisalhos, olhou-se de novo no espelho e sorriu amargamente, deixando para a volta o choro de todas as noites e a solidão de todos os momentos.
Raimundo Antonio de Souza Lopes
Enviado por Raimundo Antonio de Souza Lopes em 29/07/2019
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