Lençóis Trocados
Desculpe, mas preciso lhe contar. Não foi nada programado, preparado, conspirado, mas foi de repente, ninguém planeja essas coisas. Quando você abriu a porta e disse querida, olhe quem chegou e vi aquele moço bonito, com cara de vagabundo cansado, olhos expressivos de terra molhada, e quando ele me olhou de cima a baixo, numa desfaçatez e atrevimento absurdos, ao invés de odiá-lo, gostei. Ao invés de fazer muxoxos, convidei-o com um sorriso de perfume de florais, ele sempre me fitando nos olhos, como querendo me esvaziar toda, apertando-me as mãos com aquelas mãos calosas, de homem no cio, perfume francês varando-me as narinas e as entranhas e meus sentidos. Lembra que nos prometemos fidelidade total, honestidade plena? Nesses dez ano em que estamos casados, quantas vezes tive de me negar pra me amoldar a você, os livros que deixei de ler, as músicas de que gostava e tive de ficar mouca, numa surdez alienatória absurda? Aqueles seus colegas da Câmara, gordos e carecas e histriônicos, sabucos ridículos, com suas esposas traídas e mal vestidas e medíocres, você nunca pensou que tudo aquilo me fazia mal? Aqueles beijos hipócritas lacrados na minha face, o nojo me vinha à cara e você nunca notou?
Quando você me falou de seu irmão rebelde, anarquista, que fizera seus pais entrarem em depressão quando ele largou o curso de medicina e “fugiu” pra Paris pra ser um escritor, eu o critiquei, biscuit que fui por muito tempo seu. Achei-o ingrato e fiz coro a vocês contra ele. Virei um adorno enodoado de vocês por muito tempo, querido, até que comecei a ler, refletir, dimensionar... E sabe quando isso aconteceu? Quando li os três livros que ele escreveu. Descobri um homem sensível, com uma preocupação social muito forte, ganhador de prêmios literários importantes. Ele ganhou o Goncourt, querido. Como um homem desses é um bandido, um pária, um ingrato? Um escritor brasileiro ganhar um prêmio desses, você consegue medir isso? Não entendo como duas pessoa do mesmo sangue são tão diferentes, tão equidistantes em ideais, em cultura, em posicionamentos políticos. Por que baixou a cabeça? Olhe pra mim! Olhe pra mim! Quer me xingar, xingue! Me detrate, me humilhe, mas eu não posso lacrar no fundo do cofre da hipocrisia isso que tou sentindo. Nesses quinze dias em que ele foi nosso convidado, conversamos mais do que todos esses anos de nós dois casados. Sequer nos tocamos, eu ainda impregnada de alertas, ele sabendo do perigo que corríamos, dessa paixão desesperada que estava nascendo entre nós, nossos olhos invadindo as cavernas existenciais e plurais e vivenciais da gente. Quem pode explicar isso?
Quando perdemos nosso filho, ainda no quinto mês de gestação, você me prometeu que não iria mais concorrer a nada, lembra? Atolei-me de esperanças, fiz tantos planos e você os enterrou quando, a pretexto de fidelidade ao seu eleitorado e aos seus áulicos, concorreu e ganhou. Nossos fins de semana, nossa... Perdi a conta das vezes em que fizemos amor. Um distância meridiana, um silêncio de mata queimada, você ao celular, eu a vagar... E eu, uma “lady” à Jane Austen, sempre pronta para os jantares em Palácio, sorrindo para aparecer nas colunas sociais dos domingos. O que houve com a gente? Em que nos transformamos? Aí ele vem, com todo aquele arroubo de Jack Kerouac, uma mente borrifando novidades, ideias, visões de mundo absolutamente contrárias às nossas, você nunca me disse que ele era tão encantador, querido.
Não vai me dizer nada? Por que não chora, como todo homem faria nessas horas? Essa estrutura de impavidez e insensibilidade, até quando? Eu estou dizendo que vou deixá-lo e você não diz nada? Esses olhos que um dia me vazaram e agora me esvaziam, cadê o brilho deles? Nada? Pensa que é fácil pra mim essa decisão? Uma ruptura de dez anos deixa escombros. Neste momento sou pedaços, sou um terreno destroçado pela fúria dos Átilas convencionais. Com pouco estaremos melhor, aquele roteiro medonho de Woody Allen, vida que segue. Sempre desgostei de Woody Allen, lembra? Enfim, tenho de ir. Deixo todos seus ternos e suas gravatas e seus sapatos prontos, tudo separado. Beijo, querido. Fique com Deus.
E não nos odeie, por favor.