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Fernandes olhou para a direção indicada pelo funcionário e seguiu em frente. De cada lado das pequenas ruas que separavam as quadras havia túmulos imponentes de pessoas que tinham sido importantes na história do país. Desconfortável, Fernandes olhava para os mausoléus tendo a nítida impressão que estava sendo observado, mas sabia ser só seu receio por estar andando sozinho num cemitério.
Não demorou muito, ele começou a sentir calor, tirou o paletó, jogou-o sobre o ombro e prosseguiu. Já no local indicado, ele sentiu um perfume que não sentia desde a infância e tentou identificar de onde estaria vindo tal fragrância. Percebeu que vinha de uma pequena arvore de flores brancas conhecida como dama da noite, uma planta incomum nos cemitérios. Mais alguns passos adiante e se viu em frente ao mausoléu de sua família.
Tudo havia mudado muito. A reforma que havia mandado fazer no jazigo ficara ótima e, apesar dos dezessete anos já passados, estava muito boa. O mausoléu lembrava os templos romanos com suas duas colunas de mármore branco, uma de cada lado. Tudo estava bem conservado e os jarrões tinham flores bonitas. Havia também uma pequena escada de três degraus que levava da ruela à entrada e ele subiu os degraus aproximando-se da pequena porta de acesso em metal dourado escuro. Dentro do túmulo estava escuro e não conseguiu visualizar absolutamente nada. Ele, então, afastou-se e olhando à direita viu uma lápide dourada com os seguintes dizeres em letras grandes:
AQUI JAZ WERUSKA PINHEIRO DE GODOY
ADORÁVEL ESPOSA E MÃE.
1969-1996
ADORÁVEL ESPOSA E MÃE.
1969-1996
Já à esquerda, estava outra placa dourada no mesmo estilo da primeira, porém bem maior. Havia um mosaico acima dela com a imagem de uma linda mulher morena, de cabelos longos e pretos cujos olhos castanhos claros lembravam duas gotas de mel. Ela esboçava um lindo e terno sorriso. Fernandes leu as letras pequenas de um verso que, por mais que tentasse, há dezesseis anos não conseguia esquecer:
Todos os seres
Todos os seres vivem em busca do inalcançável.
Todos querem ser felizes.
Todos sonham em encontrar o verdadeiro amor,
Alguém que os faça felizes de maneira plena.
Nessa corrida frenética, nessa busca inconstante,
Esquecem que têm consigo mesmos, tudo que precisam...
Vida, saúde, uma família que os amam e por elas são amados.
Recebendo-os sempre de braços abertos, a cada retornar.
Família é o maior tesouro que alguém pode ter.
- Preze-a e faça a sua feliz,
Viva a cada dia como se fosse o último,
Pois daqui só levamos as recordações que deixamos.
Vivam bem! Sonhem! Amem e sejam felizes!
Contribuam para a felicidade dos que os cercam,
Deixem de ansiar pelo inalcançável,
Façam a vida valer a pena sempre...
Antes que a janela da vida se feche para vocês.
Fernandes se aproximou e tocou no mosaico com tanto carinho como se estivesse tocando na própria esposa e sentiu como se voltando ao passado e a lembrança do dia em que se conheceram ficou nítida em sua mente.
Enquanto ele estava assim absorto sentiu que alguém tocava em seu ombro e se deparou com seu motorista Rodolfo. Fernandes, sem dizer nada se voltou para o belo mosaico como se quisesse dizer alguma coisa, mas lhe faltaram as palavras certas.
- O doutor gostava muito dela, não é mesmo? – perguntou Rodolfo.
- Sim, eu a amava muito e posso dizer que ainda amo.
Fernandes olhou para o céu por um instante como se perguntasse a Deus por que ela tinha que ter morrido tão cedo. Como não havia resposta, ele abaixou a cabeça e retirou os óculos escuros da face, pois seus olhos estavam rasos d’água. Ele tentou disfarçar passando a mão sobre a face, depois se virou para o motorista e perguntou:
- Você acredita em destino, Rodolfo?
- Eu não acredito muito nessas coisas não, doutor. Por quê?
- Eu também não acredito muito, mas desde que Weruska morreu... eu me pergunto se tudo que nos acontece não será por conta de nosso destino. Desde a minha infância, todas as pessoas que eu amo morrem cedo e apenas eu vou ficando aqui.
- Doutor, a vida é assim mesmo: as pessoas nascem, crescem constituem família e morrem: é a ‘Roda da Vida’ e não há nada nem ninguém que possa mudar isso, só Deus.
- Eu não sei, não, Rodolfo. Eu acho que tem alguma coisa errada comigo. Por exemplo: quando eu tinha sete anos, o meu pai foi assassinado num horrível assalto em nossa mansão; aos doze, a minha mãe estava cavalgando na fazenda e, de repente, caiu bateu a cabeça numa pedra e morreu; alguns anos se passaram e quem foi a próxima vítima? O meu melhor amigo! Eu segui sozinho pela vida. Um ano depois, estava passando as férias no Rio de Janeiro, tentando esquecer os meus problemas e entediado em meu quarto de hotel, decidi descer até o restaurante para jantar uma refeição quente e sabe o que aconteceu?
- Não faço a mínima ideai, doutor... O senhor recebeu mais alguma notícia de que alguém morrera de repente?
- Não, eu entrei no restaurante, pedi ao garçom uma mesa num canto bem discreto para não ser notado nem incomodado e ele assim o fez. Fui conduzido a uma mesa nos fundos do ambiente onde a claridade era menor e, logo em seguida, o garçom trouxe-me a garrafa de vinho tinto solicitada.
Enquanto bebia, eu dei uma breve olhada ao redor para ver o movimento e deparei-me com o olhar de uma linda jovem que estava a me observar. De imediato, abaixei a cabeça para resistir, mas em seguida tornei a olhar em sua direção também. Ela sorriu ligeiramente, depois desviou o olhar como se estivesse envergonhada e eu aproveitei para olhá-la melhor.
Aparentando ter uns dezoito anos, ela era linda. O garçom trouxe-me a carne assada ao molho madeira e a salada que tinha solicitado e perguntei se sabia quem era a moça. Disse-me que nada sabia sobre ela apenas que era cliente assídua ali, já que toda noite se dirigia para a mesma mesa e, invariavelmente, pedia água mineral, um file de frango ou peixe e salada.
Eu solicitei que ele levasse meu cartão para ela e quando ele o entregou, ela olhou para mim com um leve brilho no olhar, mas balançou a cabeça num gesto de negatividade assim como se eu estivesse agindo da forma errada e depois se ateve à sua refeição. Eu também fiz o mesmo, contudo, minutos depois percebi uma sombra ao meu lado e quando olhei era ela.
Tinha em sua mão o cartão e me disse sorrindo que aquela cantada era nova para ela. Tentei explicar que não fora uma simples cantada, mas a única coisa que me havia passado pela cabeça para poder conhecê-la. Os olhos dela pareciam duas gotas de mel e continuaram a me olhar por alguns segundos, depois me perguntou se eu não estava me lembrando dela
Pensei em todas as jovens que conhecia, mas não me lembrei. Enquanto puxava a cadeira e se sentava, ela disse que se chamava Weruska e que havíamos estudado juntos na quarta série.
Rodolfo ouvia atentamente Fernandes contar sua história como quem realmente estivesse gostando do que ouvia e ansioso para saber o final; afinal não é todo dia que um patrão fazia confidencias tão íntimas a seu funcionário.
- Quando ouvi aquele nome, - continuou Fernandes - lembrei da menina gordinha que se sentava atrás de mim na sala de aula; mas agora a menina havia se transformado na linda mulher que estava sentada bem à minha frente.
Conversamos sobre muitas coisas e soube que ela estava cursando o terceiro ano de biologia enquanto eu cursava o terceiro anos de advocacia. Saímos do restaurante e fomos passear à beira-mar até que, por volta das onze horas, eu a deixei em frente ao prédio onde ela morava e voltei para o hotel. No dia seguinte, nós nos encontramos novamente, começamos a namorar e após um ano já estávamos casados.
Fernandes fez uma longa pausa como se lhe tivesse faltando palavras, depois com a voz quase embargada, disse:
- Os melhores anos... os melhores meses... dias... e horas da minha vida, eu compartilhei e vivi ao lado de minha mulher.
- Doutor, - disse Rodolfo, colocando sua mão sobre o ombro de Fernandes - o senhor ainda é jovem e poderá recomeçar de novo, mesmo tendo amado muito a Dra. Weruska.
- Amado, não, - interrompeu Fernandes – eu ainda amo e, do meu jeito, eu nunca deixei de amar em nenhum minuto de minha vida.
- Sim, doutor, o amor que vocês viveram foi bonito, mas o senhor deve seguir em frente. A vida continua e eu tenho certeza que o senhor irá encontrar alguém, não igual a Dra. Weruska, é claro, mas alguém com quem o senhor possa partilhar os momentos felizes que a vida ainda tem a oferecer. O senhor voltará a ser feliz, doutor, escreva o que estou dizendo.
- Deus é quem sabe, Rodolfo, pois Ele rege em nossa vida... Mas eu não mereço ser feliz já que trai a pessoa mais importante da minha vida e não soube entendê-la no momento em que mais precisou de mim.